terça-feira, março 29, 2005

 

Python


Como explicado no meu primeiro post, este blog (muito) pessoal gira à volta da Literatura e Religião. Como tal, tenho evitado temas que, à falta de melhor termo, são mais técnicos. Mas agora, faço aqui uma pequena interrupção. Conheço e uso algumas linguagens de programação, mas a minha preferida é Python. Alguém a descreveu como “the most powerful language that you can still read.” Saiu há poucos dias a segunda edição do Python Cookbook, uma colecção de exemplos prácticos retirados do cookbook e editado pelo martellibot Alex Martelli e por David Ascher. Como contribuí um par de receitas, recebi em minha casa um exemplar do livro. As receitas têm a ver com "metaclass hacking", algo que em linguagens como Java ou C++ é magia negra da mais exotérica mas que em Python é coisa relativamente simples.

A emissão normal segue dentre de momentos.



segunda-feira, março 28, 2005

 

Gólgota


And he bearing his cross went forth into a place called the place of the skull, which is called in the Hebrew Golgotha.
— Ev. João 19: 17 (King James Version)

São estas as devastações do Amor. Em procissão pela noite abismal, com o Cristo pregado na cruz dos nossos ossos, faremos o caminho até ao Gólgota do nosso coração.

Contra Emerson, Gólgota é a nossa grande, a nossa única possível vitória.



domingo, março 27, 2005

 

Contado entre os mortos


On Mathew 8:22

I have done as You ordered, Lord,
I have crawled away,
I have dug the hole
With my broken fingers,
I have laid myself

I am waiting for the flood, Lord,
I am waiting for the earth,
To fill my mouth
And cover my eyes.
I am waiting to be sealed, Lord,
I am waiting


sexta-feira, março 25, 2005

 

Perplexidades


Na agenda rabisquei vários fragmentos da minha vida que entretanto com o passar do tempo perderam todo o sentido. Por exemplo, uma entrada diz 1 ano atrás: a common disaster. Palavra de honra que não faço a mínima ideia o que é que isto quer dizer. Que há um ano eu tive um desastre e morri eu sei, mas um desastre em comum? Em comum com quê? Com quem? Que desastre?



 

Capitalismo


Pois a todo aquele que tiver, dar-se-á mais e far-se-á abundar; mas a todo o que não tiver, até mesmo o que tiver será tirado dele.
— Ev. Mateus 13:12.

O que mostra que no domínio do espiritual reina o capitalismo selvagem e os ricos espezinham os pobres.



 

Inventório II


Que impossibilidades posso eu discernir desta íntima pobreza? Um último e inútil esforço para salvar do naufrágio todos os cadáveres, todas as lembranças sufocadas, os silêncios velados, todos os pequenos choros e soluços embalados até ao sono no berço da longa e escura noite da alma.



 

Inventório


Revejo a totalidade das minhas possessões neste mundo: uma fotografia, uma agenda totalmente rabiscada de fragmentos soltos, um quadrado negro com a radiografia do meu pulmão e uma bíblia de bolso.

Sinto-me um homem muito rico.



terça-feira, março 22, 2005

 

Mas eu não quero crescer


I don´t wanna grow up

When I'm lying in my bed at night
I don't wanna grow up
Nothin' ever seems to turn out right
I don't wanna grow up.
How do you move in a world of fog
That's always changing things
Makes me wish that I could be a dog
When I see the price that you pay
I don't wanna grow up
I don't ever wanna be that way
I don't wanna grow up.

Seems like folks turn into things
That they'd never want
The only thing to live for
Is today...
I'm gonna put a hole in my T.V. set
I don't wanna grow up
Open up the medicine chest
And I don't wanna grow up
I don't wanna have to shout it out
I don't want my hair to fall out
I don't wanna be filled with doubt
I don't wanna be a good boy scout
I don't wanna have to learn to count
I don't wanna have the biggest amount
I don't wanna grow up.

Well when I see my parents fight
I don't wanna grow up
They all go out and drinking all night
And I don't wanna grow up
I'd rather stay here in my room
Nothin'out there but sad and gloom
I don't wanna live in a big old tomb
On Grand Street

When I see the 5 o'clock news
I don't wanna grow up
Comb their hair and shine their shoes
I don't wanna grow up
Stay around in my old hometown
I don't wanna put no money down
I don't wanna get me a big old loan
Work them fingers to the bone
I don't wanna float a broom
Fall in love, get married then BOOM!
How the hell did it get here so soon
I DON'T WANNA GROW UP

— Tom Waits.


 

Quando crescer quero ser assim



John Wayne


Quando eu crescer quero ser assim. Grande, com olhar de Mau e com uma espingarda a enfiar balas em barrigas proeminentes. Serei o mais jovem de três irmãos que junto com o Pai tentam sobreviver no Oeste selvagem numa pequena casa na pradaria. Vou ter um cavalo branco chamado Silver Surfer que virá até mim sempre que eu gritar Beam me up, Scotty! e como fiel companheiro terei um anão índio chamado Tatoo, que tem sotaque espanhol, é especialista no manejo de facas e sempre que vê um avião se põe aos saltos e a gritar The Plane! The Plane! Usarei uma mascarilha, roubarei aos ricos para dar aos pobres e a minha marca será um grande M amarelo. Também há uma rapariga com longos rolos de cabelo loiro e um vestido branco. Está presa a uma cadeira de rodas e usa próteses de titânio nas pernas, mas a sua coragem e determinação em superar as suas desvantagens físicas (e afinal de contas, não somos todos nós deficientes?), doçura e bondade para com animaizinhos peludos e abandonados são um exemplo e inspiração para todos os seres humanos. É gira como o caraças e apesar de ainda não saber exactamente onde é que ela entra, podem ter a certeza que vai lá estar quando eu crescer. E a abelha Maia também.

Banda Sonora: Naked City &ndash– Batman.



segunda-feira, março 21, 2005

 

Trabalho


Depois de tudo perdido, o trabalho do Amor é coligir o que restou.



sexta-feira, março 18, 2005

 

A Primavera chegou


Vinda da Rússia e três dias adiantada:

Spring is like a perhaps hand

Spring is like a perhaps hand
(which comes carefully
out of Nowhere)arranging
a window,into which people look(while
people stare
arranging and changing placing
carefully there a strange
thing and a known thing here)and

changing everything carefully

spring is like a perhaps
Hand in a window
(carefully to
and from moving New and
Old things,while
people stare carefully
moving a perhaps
fraction of flower here placing
an inch of air there)and

without breaking anything.
— E. E. Cummings.


quarta-feira, março 16, 2005

 

Afinal, só por capricho não me suicido


A Ballade of Suicide

The gallows in my garden, people say,
Is new and neat and adequately tall;
I tie the noose on in a knowing way
As one that knots his necktie for a ball;
But just as all the neighbours on the wall
Are drawing a long breath to shout "Hurray!"
The strangest whim has seized me. . . After all
I think I will not hang myself to-day.

To-morrow is the time I get my pay
My uncle's sword is hanging in the hall
I see a little cloud all pink and grey
Perhaps the rector's mother will not call
I fancy that I heard from Mr. Gall
That mushrooms could be cooked another way
I never read the works of Juvenal
I think I will not hang myself to-day.

The world will have another washing-day;
The decadents decay; the pedants pall;
And H.G. Wells has found that children play,
And Bernard Shaw discovered that they squall;
Rationalists are growing rational
And through thick woods one finds a stream astray,
So secret that the very sky seems small
I think I will not hang myself to-day.

ENVOI

Prince, I can hear the trumpet of Germinal,
The tumbrils toiling up the terrible way;
Even to-day your royal head may fall
I think I will not hang myself to-day.

— G.K. Chesterton.


 

Vou me suicidar


Hoje de manhã remeti ao devido destinatário uma pequena carta anunciando o meu suicídio. O tom é insuportavelmente piegas e sentimental mas depois de contar uma anedota muito engraçada (só de me lembrar já estou a rir) acaba da seguinte forma: “Espero que estejas a rir. A sorrir pelo menos. Far-me-ias sorrir.” A anedota era um diálogo entre a Branca de Neve e um dos sete anões (o Grumpy), e apesar de a última frase não ser literalmente verdadeira (é difícil sorrir quando se está morto) quero acreditar que no essencial resume o que eu sinto.

Tive que sair de casa para comprar envelope e selos. Já na loja a empregada, a piscar o olho, perguntou-me se era para uma carta de amor. Eu disse a verdade e respondi que sim. Ela riu-se e eu sorri. De volta a casa dei de caras com toda a espécie de imagens de morte. Um trilho de formigas dilacerava um insecto e depois desaparecia para dentro de uma parede. Um acidente de carro. Uma árvore nua a espetar as baionetas dos ramos na barriga do céu. Uma mulher de olhos castanho-claros. Um crucifixo. Escorreguei em porcaria de cão, tropecei numa pedra e caí ao chão (rima não intencional). Querem melhores imagens de morte que estas? Escrevi a carta, saí outra vez de casa, larguei o envelope no correio e a ranhura largou um arrotozinho de prazer, escorreguei em porcaria de cão e caí ao chão (rima não intencional), voltei para casa. Já estou morto, querida.

Supervisiono os instrumentos de morte à minha disposição (esta rima é de propósito). Originalmente, pensei em enforcar-me, mas mesmo em cima de um banco e com os braços esticados, sou demasiado baixinho para chegar ao tecto e pendurar uma corda. Além disso tenho medo das alturas. Tenho uma tesoura para espetar no pescoço e uma carteira por abrir de lâminas de barbear afiadinhas para cortar os pulsos. Mas para usar a primeira é preciso ter uma mão firme e forte e para a segunda teria sido melhor se eu tivesse nascido hemofílico. Posso escolher uma morte eléctrica ao enfiar os dedos convenientemente delambidos na tomada. Já estou a ver o filme inteiro: a ser electrocutado, em convulsões violentas e os cabelos em pé... as luzes a falharem... a instalação eléctrica estoura e... nada. Olho para as pontas dos dedos chamuscados, sinto o coração... continua a bater, raios! Alternativamente, posso usufruir (boa palavra esta, usufruir) de uma morte química por engolir algumas centenas de comprimidos colhidos das dezenas de caixas de medicamentos espalhados por casa. Mas talvez não seja boa ideia, pois posso cair inconsciente antes do momento final, coisa que não pode acontecer por nada deste mundo. Ou, pior ainda, distraído como sou acabo por tomar apenas soporíferos inofensivos ou purgantes de grande potência. Hmmm, talvez devesse comprar um revólver. Mas onde? Sempre posso atirar-me da janela nas traseiras. Mas vivo num quarto andar e acho que a distância daqui até ao chão é suficiente apenas para me quebrar alguns ossos. E duvido que a porteira me deixasse rastejar sangrando pela casa dela fora, escadas acima e de volta à minha janela para me atirar outra vez. Ou o gigantesco cão que ela tem preso no pátio, um homossexual impotente, atirava-se a mim e começava a lamber-me todo. Além disso tenho medo das alturas. Hei de me lembrar (quase ia escrevendo lamber!) de qualquer coisa eficaz e certeira como tubarões ou advogados.



terça-feira, março 15, 2005

 

Ensaio de despedidas IV


É conhecido o hábito dos Suicide (Alan Vega e Martin Rev) insultarem o público nos seus concertos. Este blog dura há 39 dias e agora que o vou suicidar (sim, é verdade, acaba aqui este blog) parece-me que insultar a minha audiência (isto é: eu) é a maneira mais justa de terminar.

**** ***!

Banda Sonora: Suicide – Rocket U.S.A.



segunda-feira, março 14, 2005

 

V., Victoria, Vénus, Vheissu, Antártida, Pólo Sul, Eu


Volto a V. e ao capítulo VII. Outra das personagens é Hugh Godolphin, capitão da marinha Inglesa. Numa conversa com uma jovem Inglesa, Victoria Wren, explica-lhe o que é Vheissu. Mais tarde, ao seu amigo Signor Rafael Mantissa, conta o que tinha visto de especial em Vheissu:


Nada — segredou Godolphin. — o que eu vi foi o Nada.

Depois conta a sua viagem ao pólo sul:


Foi estupidez o que fiz. Quase ouve um motim. Afinal de contas, um homem, tentando conquistar o Pólo no meio do Inverno... Acharam que eu era doido. Talvez fosse, nessa altura. Mas tinha de lá chegar. Achava que só lá, num dos únicos pontos do globo que não giram, podia ter tranquilidade suficiente para resolver o enigma de Vheissu. Estás a perceber? Queria permanecer mesmo no centro do carrocel, nem que fosse só por um instante, até me orientar e encontrar a resposta. E, podes crer, a resposta estava lá, à minha espera. Tinha começado a escavar um esconderijo ali ao pé, depois de espetar a bandeira. A aridez do sítio uivava à minha volta, como num país esquecido do demiurgo. Em mais nenhum ponto da Terra poderia haver tanto vazio, tanta ausência de vida. À profundidade de meio metro, mais ou menos, bati em gelo transparente. Uma luz estranha, que parecia mover-se, atraiu a minha atenção. Limpei à volta. Olhando-me através do gelo, perfeitamente conservado, a pele ainda com as cores do arco-íris, estava o cadáver de um dos macacos deles.

E acaba dizendo Se o Éden é a criação de Deus, só Ele sabe que demónio criou Vheissu. A pele que povoava os meus pesadelos era a única coisa que realmente existia. Vheissu propriamente dita, um sonho festivo. Pois não é de um sonho de aniquilamento que o Antárctico mais se aproxima?

Volto a repetir aquilo que já escrevi num outro post: é no pólo sul do nosso eu, lá onde nada se mexe, que nos apercebemos que a interioridade à nossa volta é um sonho de aniquilamento sonhado pelo demiurgo e embrulhado numa pele de cadáver. E se algum leitor acha que esta constatação é "deprimente" então é porque não percebeu rigorosamente nada.



domingo, março 13, 2005

 

O nascimento de Vénus de Botticelli



Nascimento de Vénus (c. 1485-86) pintado para a villa de Lorenzo di Pierfrancesco de' Medici e em exposição na Galeria dos Uffizi em Florença.


Vénus foi concebida quando o Titã Cronos castrou o Deus Urano e os seus genitais caíram ao mar fecundando-o. Botticelli apresenta-a desembarcando na ilha de Chipre, vinda numa concha impulsionada pelos deuses do vento e sob um chuveiro de rosas.

Durante séculos as obras de Sandro Botticelli (1446-1510) foram totalmente ignoradas. Só no século XIX o pintor conheceu uma segunda vida. A recuperação é feita inicialmente por artistas como Ruskin e Rossetti mas ainda na década de 1860 havia a opinião generalizada que Botticelli limitava o seu atractivo à preferência dada às mulheres feias (?!). F. Kermode em Formas de Atenção (livro que estou a seguir para escrever este parágrafo) cita R. N. Wornum que descreve tais mulheres como “rudes e de um modo geral destituídas de beleza.” Mas na década de 1870 o grande crítico Romântico Walter Pater publica o famoso ensaio The Renaissance onde procede a uma recuperação mais sistemática de Botticelli.

Faço agora uma viragem em direcção a V. Se o americano John Ashbery é o meu poeta vivo favorito, o também americano Thomas Pynchon é o meu romancista vivo favorito. Por uma espécie de consenso geral, a obra-prima de Pynchon é Gravity’s Rainbow (1973), mas pessoalmente acho o romance túrgido e gelado e os seus muitos excessos curto-circuitam o prazer da leitura. Para mim, a verdadeira obra-prima é V. o seu segundo livro publicado em 1963.

É impossível resumir ou sequer descrever V. Para o que me interessa aqui salto directamente para o capítulo VII com o título “Ela não larga a parede do Oeste” (na tradução de Rui Vanon). Em Florença, sentados num café, uma trindade constituída pelo Signor Rafael Mantissa, discípulo de Maquiavel e tal como ele um exilado, Cesare, um Italiano que sabe manejar bem uma faca, e Gaúcho, um revolucionário romântico vindo da Venezuela, discutem os detalhes de um roubo. Objectivo: o quadro Nascimento de Vénus de Botticelli exposto na galeria dos Uffizi. O plano envolve uma olaia oca fornecida por um florista reticente que transportará o quadro (que é enorme, 1,75 por 2,79m), uma granada atirada contra uma janela e uma diversão. No final do encontro, o Signor Mantissa murmura “Ela é tão linda!” Na noite fatídica, os companheiros de Gaúcho, os Figli di Machiavelli, assaltam o centro da cidade a galope cantando Avanti i miei fratelli. Figli di Machiavelli, avanti alla dona Libertá. O exército persegue-os furiosamente. “A pancadaria estala a murro” traduz Rui Vanon. Depois começam os tiros e o sangue corre pelos passeios. Um insurrecto de camisa às cores é apunhalado à baioneta várias vezes. Numa esquina uma mulher chamada Victoria Wren, com uma travessa de marfim no cabelo com cinco crucificados partilhando um braço, assiste à glória da Violência como se fosse uma cena preparada para a sua exclusiva atenção. Também nós os leitores lemos crucificados a uma esquina a glória da Violência como num teatro privado. A trindade de conspiradores aproveita a confusão para entrar na galeria. Já na sala Lorenzo Monaco, Mantissa fica especado a olhar Vénus como um “meigo libertino assaltado por um ataque de impotência” (Oh como eu o entendo!); desiste do plano e deixa-a a ficar pendurada na parede. Ouvem-se tiros. Gaúcho atira uma granada para o corredor e depois desatam a fugir dali, Gaúcho disparando à queima-roupa, Cesare brandindo uma faca como um louco e Mantissa esbracejando no ar como um albatroz descontrolado. Conseguem salvar-se. Nessa noite, da ponte San Trinitá, uma barcaça desce o Arno em direcção a Pisa e ao oceano tendo como tripulantes um eterno exilado apaixonado por Vénus, um capitão da marinha e explorador do Antártico e o gordo do filho. Na galeria dos Uffizi, frente à Vénus de Botticelli está uma olaia oca carregada de flores roxas.

Desde a minha adolescência que ando exilado e, como o Signor Mantissa, obcecado pela Vénus de Botticelli. Ela é para mim uma espécie de símbolo do Terrível, do Brutal milagre da pura Beleza. A Vida tem-me confirmado essa certeza com dolorosa pungência. E é então que chego a saber que sou um Homem Mau porque a vontade que tenho é de agarrar numa pedra e desfazer-lhe o rosto numa polpa de sangue e osso esmigalhado (Isto, como é óbvio, é uma grande mentira. Como disse o Outro: “Compreendem, eu amava-a. Foi amor à primeira vista, à última vista, a todas as vistas.” O que não é mentira nenhuma é que eu sou mesmo um Homem Fundamentalmente Mau).

Banda Sonora: para confundir ainda mais os meus eventuais leitores (— Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!), oiçam o manifesto sado-masoquista dos Velvet Underground, Venus in furs.



sábado, março 12, 2005

 

Aventuras na terra do meu corpo II


Hipotermia: f. Med. Abaixamento anormal da temperatura do corpo ou de uma parte do corpo. (do Gr. Hupo + therma).

Em noites geladas de Inverno, após algumas horas a tentar curar as insónias fingindo trabalhar frente ao computador, dirigo-me para a cama e deito-me. Debaixo de três cobertores e uma pesada cobertura tirito de frio, um frio que vem do interior, "que sopra das regiões geladas da morte." Talvez o meu baixo peso e o facto de me alimentar mal expliquem o curioso fenómeno. Nos poucos períodos de sono, os sonhos são tristes, tristes, tristes. Ausência, solidão, incomunicabilidade. Atravesso os dias como os fantasmas atravessam as paredes: meio-morto. Não tenho visões, não movo montanhas.

Assisto à degradação do meu corpo com o mesmo interesse desapaixonado de um entomologista a observar um insecto a desfazer-se em ácido.



 

Obscenidades em Latim


Os cinco graffiti citados abaixo ficaram gravados nas paredes de Pompéia que sobreviveram à erupção do Vesúvio. São citados do Corpus inscriptionum latinarum em Europe: a History, de Norman Davies.


Filius salax, quot mulierum difutuisti
Ampliate, Icarus te pedicat
Restituta pone tunicam rogio redes pilosa co
Impelle lente
Messius hic nihil futuit

Segundo as notas do livro, o quarto graffiti tem uma ilustração a acompanhar. Estou mesmo a imaginar. Escusam de me pedir a tradução do acima.



domingo, março 06, 2005

 

Amor aos livros


Vão até aqui para lerem as inúmeras histórias de amor pelos livros. É comovente saber que mesmo o nosso solitário amor é compartilhado por uma pequena multidão. Um post comoveu-me especialmente – mas não vou dizer qual foi.



 

Sonic Youth e a fábrica de sonhos


Beauty lies in the eyes

There's something in the air here
makes you go insane
brings you back to me
It's been so long
all that I have to do
is live along
It's coming coming down
over me
Do you want to see
the explosions in my eye
Do you want to see
the reflection of
how we used to be
Beauty lies
in the eyes of anothers dreams
Beauty lies
lost in anothers dream
it's coming coming down
over me
Do you want to see
the explosions in my eye
Do you want to see
the reflection of
how it used to be

hey baby
hey sweetheart
hey fox come here
hey beautiful
come here sugar

— Sonic Youth

Em 1986 os Sonic Youth lançaram a sua obra-prima absoluta Evol (Love escrito ao contrário), um dos melhores álbuns de rock de todos os tempos. No ano seguinte lançaram Sister, um álbum que está uns bons furos abaixo do seu antecessor, mas que se não fosse por mais nada, é redimido pela canção Beauty lies in the eyes.

Lembro-me de há uns bons anos atrás ter engendrado uma história dividida em sete capítulos. Cada capítulo estaria escrito como um argumento cinematográfico, com anotações para os planos de filmagem, ângulos de câmara, etc. e descreveria os minutos introdutórios de um filme pornográfico. Já não me lembro de muita coisa e não estou com paciência para remexer nos meus arquivos (presumindo que sobrou alguma coisa das devastações periódicas a que eu os submeto) mas lembro-me que um dos capítulos se intitulava A Branca de Neve e os Sete Garanhões, tinha como banda sonora perfeita o Beauty lies in the eyes e durava exactamente 2 minutos e 18 segundos. Resumidamente, eram dois minutos perseguindo de câmara na mão a actriz principal (do que eu me recordo: morena, cabelo longo, t-shirt branca e mini-saia. Um plano estrategicamente filmado deveria insinuar que debaixo da mini-saia não havia nada. O pormenor mais importante: olhos castanho-claros) no seu caminho até um motel à beira da estrada nos arrabaldes de alguma cidade americana. Quando ela abrisse a porta do quarto ver-se-iam sete garanhões musculados prontos para a acção, a música acabaria e a esta altura, ainda antes de a natureza seguir o seu curso e todos os buracos disponíveis da actriz serem preenchidos, eu já teria largado a câmara. É que bem vêem, não estou mínimamente interessado em pornografia nem sequer naquilo que vulgarmente se chama de “sexo”. Mas estou interessado em olhos castanho-claros e nas explosões dentro deles, na juventude sónica e em fábricas de sonhos.


hey baby
hey sweetheart
hey fox come here
hey beautiful
come here sugar


sábado, março 05, 2005

 

Sobre o que lá não está


Mas as mulheres, que tinham vindo com ele desde a Galiléia, acompanhavam-no, e foram ver o túmulo memorial e como o corpo dele estava deitado; e voltaram para preparar aromas e óleos perfumados. Mas, naturalmente, descansaram no sábado, segundo o mandamento.
No primeiro dia da semana, porém, foram muito cedo ao túmulo, levando os aromas que tinham preparado.

— Ev. de Lucas 23:55-24:1.

O que aconteceu naquele sábado? Não nos é dito. Sabemos apenas que entre a morte e a conquista sobre a morte, os discípulos cumpriram o mandamento da lei de guardar o sábado e “descansaram”. O nosso tempo é o do presente, o perpétuo meio. Este é o interminável Sábado das nossas vidas: esperamos. A esperança é que o Domingo de amanhã chegue e nós os mortos acordemos.



quinta-feira, março 03, 2005

 

Para um amigo na morte do pai


God's Grandeur

The World is charged with the grandeur of God.
It will flame out, like shining from shook foil;
It gathers to a greatness, like the ooze of oil
Crushed. Why do men then now not reck his rod?
Generations have trod, have trod, have trod;
And all is seared with trade; bleared, smeared with toil;
And wears man's smudge and shares man's smell: the soil
Is bare now, nor can foot feel, being shod.

And for all this, nature is never spent;
There lives the dearest freshness deep down things;
And though the last lights off the black West went
Oh, morning, at the brown brink eastward, springs-
Because the Holy Ghost over the bent
World broods with warm breast and with ah! bright wings.

— Gerard Manley Hopkins.


 

The Snow Man


Já agora aqui fica o poema:


The Snow Man

One must have a mind of winter
To regard the frost and the boughs
Of the pine-trees crusted with snow;

And have been cold a long time
To behold the junipers shagged with ice,
The spruces rough in the distant glitter

Of the January sun; and not to think
Of any misery in the sound of the wind,
In the sound of a few leaves,

Which is the sound of the land
Full of the same wind
That is blowing in the same bare place

For the listener, who listens in the snow,
And, nothing himself, beholds
Nothing that is not there and the nothing that is.

– Wallace Stevens.

É preciso o génio de Wallace Stevens para nos fazer ver o nada que lá não está e o nada que é. Foi preciso o génio de Wallace Stevens para eu chegar a entender que o Amor é exactamente isto: ver o nada que lá não está e o nada que é.



 

Sobre o Inverno


Winter in Ice

This must be the longest winter
Covered in snow and charged with ice,
Ridden with wind blown from empty places
Where the light is bare and desolate

And these children that hover over me
With their teeth rotten and eyes swollen
Why don’t they go away?
Was it they who have put me down here?
And why do they stare at me like that?
They have sticks with them
With which they poke me
And sometimes one of them throws rocks
But most of the time they just stand there
Staring back with a gaze
Blank and meaningless
As the landscape that covers
As the winter that encases me

Banda Sonora: Ian Simmonds – Ice Waltz.

A Ler: Wallace Stevens – The Snow Man.



 

Frio Frio Frio


A Antártida é essencialmente um enorme lençol de gelo branco com uma área de quatorze milhões de quilómetros quadrados (cerca de uma vez e meia os Estados Unidos) e dois quilómetros e meio de espessura. Quatorze milhões de quilómetros quadrados de gelo; brancura cega, vazia e gelada para onde quer que se olhe. No interior, a uma altitude média de dois mil e oitocentos metros, a precipitação é menos de cinquenta milímetros por ano (mais ou menos a precipitação do deserto do Sahara), a humidade média é de zero vírgula zero três por cento e a pressão atmosférica ainda é mais baixa. As temperaturas médias andam nos cinquenta graus negativos, mas com ventos a variarem entre as vinte e as duzentas milhas por hora, a sensação de frio é ainda maior. Uma pessoa desprotegida morreria congelada em questão de minutos.

Com a chegada do inverno, o mar circundante congela e a Antártida dobra de tamanho. Durante quatro meses o sol nunca se levanta, a noite tem vinte e quatro horas, a escuridão é total e as temperaturas descem até aos setenta graus Celsius negativos. O verão dura outros quatro meses e o dia tem vinte e quatro horas porque o sol nunca se põe. Em dias de céu limpo é possível enxergar montanhas a cem quilómetros de distância, mas a luz difundida faz perder qualquer noção de distância. Montanhas inteiras desaparecem contra o fundo de uma nuvem branca, é impossível identificar o horizonte e as superfícies de neve são invisíveis. Devido à alta altitude e ao gelo que reflecte cerca de noventa por cento da luz solar, as radiações queimam tudo à superfície. Na transição entre verão e inverno, quando o sol se põe, a sombra de uma pessoa pode alongar-se até aos quinze metros.

No ano dois mil surgiu no jornal Applied and Environmental Microbiology um artigo apresentando evidência da existência de vida bacteriológica no pólo sul. Imagino que a função destas bactérias é devorar o que a noite antártica, as temperaturas extremas, os ventos ciclónicos, a falta de água e as radiações mortíferas deixaram sobreviver. A última linha de defesa contra a Vida é sempre a Vida.

Pois bem, certas paisagens interiores conseguem ser ainda mais agrestes e inóspitas.

Banda Sonora: John Cale – Antarctica starts here.



terça-feira, março 01, 2005

 

Aventuras na terra do meu corpo


Hoje de manhã encontrei um cadáver a flutuar em água suja na minha banheira. O corpo parece-se muito comigo: a mesma cara pálida, os mesmos lábios lívidos, os mesmos olhos abertos e fixos no vazio. Ainda lá está, a apodrecer na água suja. Afinal de contas, não preciso de tomar banho.

Banda Sonora: Wiseblood – Someone drowned in my pool.



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