segunda-feira, julho 25, 2005

 

Crimes do ABC


Já foi há muito tempo que li a Agatha Christie, mas uma das histórias que ficou na minha cabeça foi o "Crimes do ABC" sobre uma série de assassinatos cuja única lógica era as primeiras letras dos nomes das vítimas seguirem a ordem do alfabeto. O infatigável Poirot resolve o enigma: os assassínios aparentemente aleatórios e sem motivação eram apenas para disfarçar e submergir no anonimato um assassínio por dinheiro.

Blogar é também isto: assassinamos muitas palavras para que os verdadeiros assassínios passem despercebidos.



sexta-feira, julho 15, 2005

 

Secção especial Un certain regard VIII (último: vou fechar os olhos)


And I pray that I may forget
These matters that with myself I too much discuss
Too much explain

— T. S. Eliot.

Esperei por ti mas não vieste. Esperei muito tempo. Acho que, agora, vou fechar os olhos. Estou exausto. As Vozes apagaram-se uma a uma. Acho que vou dormir; talvez sonhar. Sonhar que estou a olhar para dentro dos teus olhos.



 

Hoist that rag


Queríamos ser o martelo de Deus e partir o Mundo aos bocados. Mas Deus fez de nós meros trapos humanos erguidos como uma bandeira no alto do monte, celebrando a Derrota e a Humilhação.

Banda Sonora: Tom Waits — Hoist that rag.



 

Sobre Jeremias 23:29


This I am
A rock
To be beaten
Like an anvil
To be smitten
Into sparks
And splinters


 

Senhor,


Ainda não é suficiente a nossa humilhação?

Banda Sonora: Leonard Cohen — Teachers.



 

A arte da perda


One Art

The art of loosing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of loosing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three beloved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I missed them, but it wasn't a disaster.

— Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) a disaster.

— Elizabeth Bishop.


 

Curtas IV


Geology

I sleep naked under the turf
In the frozen ground
Curled under feet of ice
Breathing dust and eating earth
Hearing no sound
But that of terrain slides
In the slow turning
Of geological eras
The counter forces
Of pressure and weight
That plunge me downward
Through the rock and the lava
Towards the centre of the world


 

Para acabar de vez com os amigos VI: Stretto


Depois do massacre da noite, o despertar. Quanto tempo demorou a noite escura? perguntas a ti mesmo. Foram dias? Meses? Anos? Perdeste o sentido do tempo. Mas voltaste. E quando voltaste estava tudo destruído. Pensas que é como olhar para terra queimada, que é como olhar para os escombros de uma cidade bombardeada. E depois vêm à tona da memória pequenas imagens, fragmentos de destruição e violência. E é então que começas a perceber. Primeiro, lentamente, depois, com uma clareza brutal. É então que percebes que foste tu que bombardeaste o Mundo. Achamos que o sofrimento nos faz mais sábios e mais fortes mas não é verdade, estamos apenas mais fracos e mais pobres. E depois existem os Outros, que simplesmente não sabem o que fazer connosco. Eles tentam dizer qualquer coisa, fazer qualquer coisa, mas o quê? E todos eles estão irremediavelmente distantes. É como olhar pelo lado errado dos binóculos, é como estar dentro de um sonho consciente de que é um sonho. E nenhuma segunda oportunidade te é dada. São com estes que tens de refazer a vida. E sabes que é impossível, que está tudo irremediavelmente partido. E o que se partiu não pode ser concertado. E não sentes nada. És nada. Estou morto, dizes a ti mesmo, isto é o mesmo que estar morto. Dizes a ti mesmo que ter sobrevivido é suficiente, que tem de ser suficiente quando já nada o é. Porque sabes que vais morrer pelo menos ainda mais uma vez. Apenas e ainda.

Banda Sonora: Pigeonhed — The Full Sentence.



 

Noite das facas longas


Eu sei onde vives. Uma cruz vermelha no mapa. Depois o caminho até lá de noite, a coberto da escuridão. Tenho uma faca longa na minha mão. Apontada ao teu coração. Eu sei onde vives. Cabrão.



 

A solidão radical é isto


 

Greta Garbo



Junto-me Alexandre Soares Silva. Não consigo olhar muito tempo para fotografias da Greta Garbo. Dói. Como o caraças.



 

Um obrigado


Como alguém que é indiferente ao ciclismo, um obrigado ao maradona por aguentar "esta merda à tona".



 

Paul Celan


Em 1 de Julho de 1944, Celan escreve uma carta ao seu amigo de infância, Erich Einhorn. Na tradução para Inglês de John Felstiner:


Dear Erich,

I've come to Kiev for two days (on official business) and I'm glad of the chance to write you a letter that will reach you quickly.
Your parents are well, Erich, I talked with them before I came here. That's saying a lot, Erich, you can't imagine how much.
My parents were shot by the Germans. In Krasnopolka on the Bug River.
Erich, oh Erich.
There's much to tell. You've seen so much. I've experienced only humiliations and emptiness, endless emptiness. Maybe you can come home.

I've experienced only humiliations and emptiness, endless emptiness. O Filho percorreu o calvário até ao Golgota de uma vez para sempre, onde os pecados do Mundo foram pregados nas suas mãos e pés. Mas tenho que cá para mim, Deus escolhe a alguns para também eles carregarem com o peso dos pecados do Mundo, para que o resto dos Humanos, todos nós, possamos continuar de alguma forma. Uma espécie de Lei da Compensação.


die Offenen tragen
den Sein hinterm Aug,
der erkennt dich,
am Sabbath.

Estes são os últimos versos que Celan escreveu e são testemunha de uma esperança, ainda que ténue, de um Sábado de descanso final. Mas os mortos são ressuscitados ao Domingo e Celan cansou-se de esperar. Uma semana depois, exausto pelas humilhações e pela imensidão do Vazio, desapareceu nas águas escuras do Sena tendo Deus como única testemunha ocular.

E a nós o que resta? O que fica das humilhações e das perdas? Talvez escolher o Silêncio em vez do Ruído, a Quietude em vez da Impaciência, a Contenção interior em vez do Desperdício. São estas as nossas armas: a humilhação, a impotência, o silêncio, mas a maior de todas é a humilhação. A Humilhação é Infinita.


 

Sem título


Erblinde schon heut:
auch die Ewigkeit steht voller Augen —
darin
ertrinkt, was den Bildern hinweghalf
über den Weg, den sie kamen,
darin
erlisht, was auch dich aus der Sprache
fortmahm mit einer Geste,
die du geschehn ließt wie
den Tanz zweier Worte aus lauter
Herbst und Seide und Nichts.

— Paul Celan


 

Secção especial Un certain regard VII


E se eu estivesse a olhar para ti? Isso mudaria alguma coisa? Mudaria mesmo?



 

Secção especial Un certain regard VI


Estava a olhar para ti, para dentro dos teus olhos. E, arrancado à morte, foi então que me lembrei. Lembrei-me da exacta razão matemática porque te amo.



 

Hoje vou escrever muitos posts


Hoje vou escrever muitos posts. Hoje vou gritar. Assim mesmo; gritar. Hoje vou lavar as mãos da Infâmia. Vou revelar aquilo que a Noite me deu a ver. Hoje vou escrever punhais. Sangue vai escorrer. Cães virão comer das feridas. Hoje vou escrever muitos posts.



 

Secção especial Un certain regard V


Não, não estou a olhar para ti. E tu não estás a ver-me. Tu não consegues ver-me.



 

A Morte anda por aí


A Morte anda por aí. De pá na mão; de pá raspando no chão duro. Arrancando as pedras do chão duro das nossas devastações.

Queimando buracos de luz no manto escuro dos nossos céus nocturnos.



quarta-feira, julho 13, 2005

 

Secção especial Un certain regard IV


Não, não estou a olhar para dentro dos teus olhos. E os teus olhos não são pretos mas castanho claros.



 

Sobre Hebreus 11:37, 38


Foram apedrejados, foram provados, foram serrados em pedaços, andavam vestidos de peles de ovelhas e de peles de cabras, passando necessidade, tribulação, sofrendo maus tratos; e o mundo não era digno deles. Vagueavam pelos desertos e pelas montanhas, e pelas cavernas, e pelas covas da terra.
— Ep. Hebreus 11:37, 38.

Ocorre-me que Nós não só não somos dignos dos nossos mortos, mas que também não somos dignos daqueles ainda por nascer.

Banda Sonora: Leonard Cohen — Dance me to the end of love.



terça-feira, julho 12, 2005

 

Secção especial Un certain regard III


O que foi? Estava apenas a olhar-te. Para ver se estavas a olhar para mim a olhar para ti. Mas não estavas.



 

Sobre Ibn' Arabi


Hoje à tardinha, sob um pôr do sol vermelho, Deus sentou-se Sozinho numa pedra e soltou um suspiro de Tristeza porque Homem nenhum O chegou a conhecer.



sábado, julho 09, 2005

 

Secção especial Un certain regard II


Não, não estou a olhar para dentro dos teus olhos. Poderia procurar exaustivamente que nunca me encontraria reflectido neles.



 

Idi i smotri


 

Propostas satânicas


Vem; vamos pegar fogo ao Mundo. Começaremos pelas crianças por nascer. Vem; vamos arrancá-las dos ventres redondos e húmidos. Picaremos os olhos delas com chaves de fendas. Faremos uma pilha de bébézinhos enrugados e lívidos e pegaremos fogo a toda aquela carne humana.

Vem; vamos pegar fogo ao mundo. Depois, as mães. Oh as mães.



sexta-feira, julho 08, 2005

 

Curtas III (Londres)


The Happening

Day hatches night
And of the cracked egg
That is the World
Destruction
Fat
Rolls over
Crashing


 

Zoo


Os cavalos verdes e amarelos valsaram avenida abaixo ao som de violinos enferrujados.

Desapareceram os patos de peruca cor de laranja e sapatos de palhaço numa triste imitação de tristes palhaços.

Onde estão os babuínos sentados à chuva como pequenos budas comendo pêssegos vindos da China?

Onde está o Hipopótamo Triste, deitado de bruços numa poça de lama, com lágrimas tatuadas no canto do olho e a sonhar com Borboletas Imperiais a arder ao sol?

As girafas de gravata e chapéu alto avisaram que não vinham para o habitual lanche das cinco da tarde (chá verde e triângulos equiláteros de pão com pepino e anchovas).

Para onde foram os tigres vermelhos que costumavam flutuar no ar sob um pôr do sol glorioso?

Foram-se todos embora. As jaulas estão vazias; o silêncio é total. O único sinal de vida é a impiedosa invasão de ervas daninhas que eventualmente afundará o meu zoológico no abandono e no esquecimento.



terça-feira, julho 05, 2005

 

O Mundo e as citações


Todas las cosas del mundo llevam a una cita o a un libro.
— J. L. Borges


No meu mundo, todas as coisas levam a uma cancão do Tom Waits.

Banda Sonora: Tom Waits — I hope that I don't fall in love with you.



domingo, julho 03, 2005

 

Elogio da normalidade


Se as pessoas normais nada têm de excepcional, as a-normais ainda menos.

Banda Sonora: Holger Czukay — On the way to the peak of normal.



sexta-feira, julho 01, 2005

 

Secção especial Un certain regard I


Não, não estou a olhar para ti; não, não estou a olhar para dentro dos teus olhos. Estou a olhar para o Infinito. És apenas um Obstáculo Humano a Bloquear o Caminho.



 

Programa de vida


Some Months Ago

Some months ago I went out early
to pay
    my last respects to earth
                farewell earth
      ocean farewell
lean eucalyptus with nude gray skin
                farewell

    Hill rain
pouring from a rockpierced cloud
hill rain from the wounds of mist
                farewell

See the mountainpeaks gather
clouds from the sky
shake new bright flakes from the mist
                farewell

Hedgerows hung with web and dew
that disappear at a touch
    like snail eyes
                farewell
To a bird only this
                farewell
and he hopped away to peck dew
from a ground web
    spider running out of her tunnel to see
to whom I said
                farewell
and she sat still on her heavy webs

I closed up all the natural throats of the earth
and cut my ties with every natural heart
and saying farewell
    stepped out into the great open

— A. R. Ammons

Logo no início do blog, fiz a minha personal mission statement. Hoje, tendo chegado à idade cristológica, reduzo o meu programa de vida aos quatro versos finais do poema de Ammons: fechar todas as gargantas da Terra, cortar todas as ligações com todo o coração humano, e murmurando "adeus," saltar para o Grande Abismo.



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