segunda-feira, abril 25, 2005

 

O partido do Diabo


Como diria Tom Waits, "it’s story time again." Em Fevereiro pus aqui uma antiga estória minha. Julgava eu na altura que não iria escrever mais estórias em Português, mas desde que o blog abriu já esboçei uma mão cheia de tentativas incipientes. Para usufruto (espero) da minha silenciosa e vazia audiência aqui fica mais um esboço.


How well I remember when he tolde me that writers are of the devil’s party, free agents of his will; and that we should believe none, for their sole aim is to trick us into their deceptions.
— Thomas C. Hodgkell, Confessions of a writer under siege (London 1867).

Não, não sou da agência funerária. Não se assuste, também não sou do fisco — as suas dívidas acumuladas não me interessam para nada. Vejo que está espantado por Eu saber das suas dívidas; sei de muito mais coisas. Mas sente-se que Eu explico-lhe tudo. Já me apresentei? Imperdoável falta minha! Chamo-me **** [incompreensível], mas as pessoas conhecem-me geralmente por Satanás, Diabo, Belzebu, etc. [esboço de um gesto com a mão direita no ar] Ouça-me [põe a mão sob o ombro dele] até ao fim [obriga-o a sentar-se]. Isso, sente-se. Muito bem. Antes de mais, devo dizer-lhe em abono da verdade, que nenhuma das histórias que circula por aí àcerca de mim é verdadeira — uma vulgar corruptela de antigas fábulas inventadas por pastores ignorantes, que de qualquer maneira ninguém entende, e de um notório mau gosto pelintra. Digamos que a versão que ele [aponta para cima] espalhou por aí não é propriamente confiável. Sou um cavalheiro. Sou advogado. Sob a minha chefia estão mais almas do que alguma vez poderia contar. Nunca aceitei subornos. Sou aquilo que se pode chamar um homem de sucesso. Sou um liberal. Eu e a organização que dirijo estamos interessados no bem estar eterno da raça humana, no seu bem estar eterno. Mas quer acredite em Mim quer não, isso pouco interessa agora. A razão de Eu estar aqui é que chegou hoje ao meu luxuoso palácio alguém que deve conhecer. Apesar do acidente brutal, a sua esposa — a Vera — continua... Oh... não me diga que esperava que ela fosse para o céu?... É compreensível, as pessoas geralmente esperam isso. Mas deixe-me que lhe diga — vá, não chore... — [silêncio entrecortado por soluços] — vá, não chore... [duas palmadinhas nas costas]. Talvez goste de saber que os cirurgiões ao meu serviço são bastante competentes e conseguiram reconstruir a sua querida Vera. A cabeleira ruiva onde tantas vezes escondeu o seu rosto. As pestanas cor de ferrugem que viu bater como asas de borboleta pela primeira vez numa tarde solarenga em dezassete de Junho de **** junto a... [soluços] Os olhos castanho claros que os seus olhos memorizaram em todos os detalhes. O longo pescoço que adorou com tão loucos gritos de prazer. Os braços de flamingo que tantas vezes o enlaçaram. Os dezassete sinais — Eu também lá estava e também os contei — nas costas dela. [silêncio. Nariz a fungar] Mas como estava a dizer-lhe o céu não é o que vulgarmente se pensa que é. Primeiro é um clube elitista. Não sabia, pois não? Mas é. O outro exige cartão de membro. Eu não faço exigências. Ao contrário de lá em cima [aponta para o tecto], na minha mansão há muitas moradas. E quando for embora vou para lhe preparar um lugar. E sabe o que é que eles fazem no céu? Nada. Olham para ele. Depois cantam. Depois voltam a olhar para ele. Nada. É verdadeiramente insuportável a cacofonia produzida por anjos e anjeletas com os seus instrumentos de metal enferrujado. Eu, ao contrário, tenho total respeito pela humanidade e pelos seus curiosos gostos. Sou Eu que verdadeiramente ama a raça humana: tal e qual como ela é. Acredite-me: o meu único desejo é a sua felicidade [sorriso complacente]. Hmmm... [Olha para ele] Alguma vez ouviu falar de Glauco? Um velhote simpático atacado de loucura mansa que intuiu que os paradoxos de Zenão podiam ser virados contra a própria textura do Tempo. Um homem ao abrir os olhos sabe que tem de chegar ao fim do dia e fechá-los outra vez. Mas antes de chegar ao fim do dia tem de chegar ao meio do dia, e antes de chegar ao meio dia tem de chegar ao meio da manhã e assim sucessivamente até ao infinito, de maneira que nunca chega a passar do instante em que abriu os olhos, ficando suspenso numa espécie de limbo temporal. Glauco poderia ter concluido como aquele Eleata, que para refutar a afirmação de Heraclito que nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio acabou a negar que se banhe uma vez sequer. Ao invés, numa intuição de génio — fornecida por Moi — concluiu que o Tempo não é contínuo mas avança por saltos discretos. Mas se avança por saltos o que é que acontece ao ser entre as negras brechas de não Tempo? Talvez o meu amigo — desculpe-me a familiaridade mas sinto que estamos a estabelecer uma amizade forte e duradoura — talvez o meu amigo, não versado em Escolástica Medieval e Cronodinâmica Quântica, não se aperceba do horror metafísico que especulações como esta são capazes de inspirar. Muitas mentes essencialmente sãs e robustas perderam-se na infinita noite da loucura por questões bem mais comezinhas, e posso afiançar-lhe que esta questão em particular lançou o pobre Glauco num terrível tumulto. Uma noite no meio de intensa oração — meros arrotozinhos da alma — sentiu a inspiração de deus — isto foi o que ele pensou, claro, mas fui Eu que o inspirei. Começou a acreditar que seria deus a manter a coerência e unidade do ser ao transportá-lo com os seus próprios dedos, com os seus dedos ressequidos, os ossos ocos dos dedos, os ossos secos dos dedos mortos, através do vazio do não ser, desmontando o intricado cenário da realidade em cada instante para voltar a montá-lo intacto e íntegro no instante seguinte. Nunca chegou a perceber porque foi condenado como heresiarca gritando até ao fim a sua mais pura ortodoxia. Teve uma morte desgraçada, assado numa fogueira. Conheço pessoalmente o Bispo encarregue da sua condenação — homem jovial e com grande sentido de humor — e assisti ao espectáculo da sua morte. Gosto particularmente de fogos. Humanos. Mas isso são outras histórias — o que Eu lhe quero dizer é que Glauco era um velhote simpático, de barba branca e olhos azuis, dizia as suas orações todas as noites como todo o bom cristão e honestamente acreditava no deus redentor — o pobre coitado [olhar compungido]. Mas deus não o salvou nem do fogo nem da loucura. Nem o salvará a si como não salvou a Vera. Sabia que o condutor do outro carro estava bêbado? E que bastava deus dar um pequeno empurrãozinho, um minúsculo chega-para-lá, para que ele não se atravessasse no caminho da sua mulher? Eu próprio o teria feito apenas se ele me deixasse. Sou Eu o seu verdadeiro consolador e venho oferecer-lhe a possibilidade de vê-la outra vez. Basta querer [pausa]. A meu ver tem duas hipóteses. Pode escolher a loucura. Pode escolher lançar-se de cabeça no abismo uivante que a dor e a mágoa cavaram dentro de si. Pensando bem, o que vê à sua frente é o trabalho de uma imaginação exausta pelo desespero e pela angústia. Está sozinho nesta sala e esta Voz que ouve existe apenas dentro da sua pobre cabecinha... agora vê-me, agora não [puf!] agora vê-me outra vez [puf! Reaparece envolto em fumo espesso]. Truques baratos de ilusionismo [aproxima-se]. Oiça-me [dá-lhe um estalo], oiça-me bem, meu [obscenidades]. Eu sei tudo e proíbo-o expressamente de enlouquecer! Proíbo-o! [agarra-o pelos ombros e abana-o] A loucura não é opção! Definitivamente. Assim, resta-lhe apenas uma hipótese. Vou sair pela janela; deixo-a aberta para me seguir. Daqui até ao chão são quinze andares, uma queda de quarenta e cinco metros, cerca de nove segundos da mais pura e intoxicante liberdade. Na sua viagem libertadora talvez tenha oportunidade de reparar no casal de libertinos na décima primeira janela que, satisfeitos da sessão de livre, saudável e robusto sexo, brindararão a si e à sua queda em direcção à felicidade em taças de champanhe borbulhante. Estarei lá em baixo, de braços abertos para o levar para uma cela confortável no Inferno, especialmente preparada para si. Numa cela contígua encontra-se a sua mulher que neste preciso momento está ser sodomizada por uma legião de demónios de testículos gigantes e hálito sulfuroso. Também lhe posso dizer que ela está a gostar muito da experiência. Se o menino se portar bem talvez lhe deixe dar uma espreitadela pelo buraco da fechadura [belisca-lhe as bochechas]. Olhe, para si, até abro uma excepção e deixo-o juntar-se aos demónios. O rabinho da sua mulher é mesmo uma fofura. Vou andando. Não se demore muito. [A sair pela janela] Lá o espero.


Comments:
Tou violentado meu amigo. Vai demorar até conseguir balbuciar alguma coisa
 
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