sábado, fevereiro 12, 2005

 

Uma Estorinha


O que se segue é uma das primeiras histórias que eu escrevi. Ingenuamente, mandei-a para o DN Jovem (ainda vive?) e ainda por cima, idiota consumado que sou, fiz publicidade entre amigos e familiares. Os comentários que recebi foram gentis e generosos, e também bastante cretinos. Serviu-me de lição: ninguém meu conhecido chegou a ler as histórias que subsequentemente enviei. Como o mal está feito, aqui fica para a posteridade uma certa visão de quando eu ainda me importava e tinha fôlego para coisas destas. Tirando um devaneio há alguns meses atrás (e que ficou incompleto e que eu nem tenho coragem de acabar), deixei simplesmente de escrever estórias em Português, uma língua que eu já não reconheço, que se tornou definitivamente impossível, que não me merece e que eu já não mereço. Ao relê-la, consciente da dívida para com Tom Waits e Thomas Pynchon em particular, a sensação geral é de indiferença; quem escreveu isto foi outro eu.

Nota: A história aqui publicada é a versão final do original que apareceu no DN Jovem.


Is there anyway out of this dream?


Há muitas e muitas luas, quando a terra era mais plana e o céu pairava suspenso a pouca distância das nossas cabeças, estava eu numa banda com mais alguns tipos. A minha alma era então três libras mais leve, os meus olhos não tinham escamas e ainda havia fogo e fôlego nos pulmões. Eles não. Eles já estavam velhos e atrasados, já tinham sido triturados e cuspidos, vendidos aos pedaços e atropelados. Mas eram no geral bons tipos e nenhum deles sequer tinha cadastro na polícia.
Tocávamos sempre de noite em espeluncas decadentes e manhosas, onde o público se dividia pelos habituais marinheiros de licença à procura de um precário equilíbrio em terra firme, pelos corpos moles e usados de prostitutas e pelos bêbados de cabeça tombada na mesa, olhos vazios, garrafa partida e lábio ensanguentado. O dinheiro que fazíamos era gasto a apanhar valentes bebedeiras que nos transformavam em sonhos intermitentes, absorvendo as cores da noite epiléptica e do néon fluorescente. Acordávamos ainda de madrugada, deitados na relva húmida e agarrados uns aos outros atrás de um banco no meio de algum jardim público, enquanto a luz avançava lentamente como um rolo compressor apagando a paisagem no seu caminho. E naqueles breves instantes, quando tínhamos como derradeiro agasalho um jornal velho de uma semana, o nosso próprio cheiro e uma mesma memória destroçada e arruinada, descobríamos que a janela do olho era uma ilusão e a nossa mente recuava em direcção ao vazio, incapaz de fornecer coerência a um mundo exterior totalmente estranho e não disposto a render o seu mistério. Depois éramos espantados de volta para a escuridão de um quarto de hotel rachado em dois como se fôssemos morcegos com medo de nos dissolvermos em cinzas.
A banda chamava-se DJ Moonshiner and the Mysterious Angel Messengers e tocávamos uma espécie mutante de Punk Jazz, voodoo sónico, banda sonora para avalanches de prédios a implodir, música ambiente para bordéis esquizofrénicos, para cadeira eléctrica, sei lá. Destilávamos música furiosamente e até tínhamos inúmeros projectos e ambições, mas estes acabavam invariavelmente desbotados e corroídos pela vida de loucos que levávamos.
Mais mortos que vivos, passávamos o dia a dormir sobre os escombros da melancolia e do desespero, tentando apaziguar os fantasmas que insistiam em nos visitar em sonhos demasiado reais para serem verdadeiros. Ou então entretíamo-nos em actividades espúrias e inúteis. Jogávamos às cartas sem baralho, em cima de uma mesa que não existia e apostando o dinheiro que não tínhamos. Ou escondíamo-nos dentro dos tambores das máquinas de lavar, e ali às voltas naquele útero de água e detergente, já sem sentido ou orientação, lutávamos contra as forças centrífugas da dispersão. Ou de pé debaixo do chuveiro a sermos baptizados, a observar o sexo mudo e murcho a pingar água tépida e a nossa vida lavada a desaparecer pelo ralo da banheira. Sem memória de qualquer contacto humano e destituídos da Palavra, éramos como forasteiros ilegais numa cidade de autismos, onde tudo estava partido e todos falavam a mesma algaraviada incompreensível. Até podíamos descer à rua em noites sem nada de alguma coisa dentro, com as máquinas fotográficas a tira-colo, mas a Morte abria o seu olho de sono e tirava-nos o retrato. Para mais tarde relembrar. E enquanto o resto da noite fugia envergonhada, o clarão fotográfico mostrava a quem quisesse ver as nossas silhuetas carcomidas.
Queríamos ser cães, árvores, vento. Queríamos fazer exactamente aquilo que fazíamos melhor: nada, e onde a música turbulenta e caótica que praticávamos fosse como o ruído de fundo de uma rádio dessintonizada a pairar num quarto vazio.

DJ Moonshiner and the Mysterious Angel Messengers.


TKO é o homem do piano. Sentava-se num pequeno banco, curvado sobre as teclas por onde fazia correr as minúsculas mãos. Um dia, farto de tocar para um público sacana, subiu para cima do piano, abriu a braguilha e começou a urinar para cima deles. Teve azar. Uns quantos marinheiros com uma réstia de lucidez intocada pelo álcool, sacaram das suas navalhas enferrujadas e perseguiram-no furiosamente sob os incitamentos obscenos das prostitutas e os hurras triunfantes dos bêbados. Apanharam-no num beco sem saída iluminado de viés por candeeiros biliosos e espancaram-no. Depois regaram-lhe o corpo com o álcool que levavam consigo e deitaram-lhe fogo. Numa das paredes do beco estava escrito reality used to be a friend of mine. Nada de muito mal lhe aconteceu, pelo menos nada que umas semanas no hospital e enfermeiras bonitas de cabelo ruivo não curassem.
Foram NU e TKO que tiveram a ideia de formar a banda. NU costumava servir como guarda-costas para um mafioso de segunda categoria e com cara de boi triste. Resolveu meter-se com a filha deste, uma desengraçada meio histérica com umas faces sumidas e o corpo como uma tábua de engomar. Num dia normal sem nada de extraordinário, apareceu-lhe o mafioso à porta com dois gorilas armados, a filha em casa de olhos negros e a sangrar do nariz, estava ele enterrado no sofá, com a barriga cheia de cerveja e a televisão ligada a disparatar estereofonicamente. “Meu ganda cornudo, vais apanhar o combóio para o outro lado do mundo antes que eu expluda com o par de tomates mirrados que tens no meio das pernas.” Ainda hoje quando se assusta agarra-se às partes como que a lembrar-se da sorte que teve naquele dia em escapar ileso.
KOCK toca saxofone e está apaixonado pela Lua. Antes de entrar na banda morava no sótão de um prédio velho a cair de roto e todas as noites de Lua cheia ficava postado à janela a admirá-la. Um dia de tão bêbado que estava, e depois de ter cantado vários poemas que variavam entre o amor absoluto e a mais profunda obscenidade, caiu cá para baixo, arrebentando-se todo. Passou três meses no hospital, durante os quais o interior do seu corpo – coração, pulmões, rins, etc. – sofreu uma reorganização total. Voltou ao ar livre e raquítico num dia chuvoso, a cabeça a fervilhar de ideias tão disparatadas quanto nocivas. Transformou o buraco onde vivia numa desordenada oficina, onde se dedicou a desenhar e a executar complicados projectos de escadas, de cordas, rolantes, hidráulicas, o que fosse preciso para chegar até à Lua. Parece que ainda conseguiu atingir os níveis mais baixos das nimbo-nuvens mas depois acabou por desistir porque lá em cima o ar era muito rarefeito e nem as máscaras de mergulhador ajudavam o que quer que fosse. Encontrei-o num bar, perdido de bêbado e a tocar um saxofone que empunhava como uma arma ameaçadora e que lhe dava o aspecto de um insecto de tromba dourada com os olhos gigantes injectados de sangue. Arrancou um solo do saxofone de fazer arrepiar os cabelos e depois chorou um choro surdo com a violência de um grito mudo. Entrou para a banda na promessa de lhe arranjarmos toda a pornografia lunar que pudéssemos e que ele pregava de uma maneira desordenada na parede e admirava com aquela morna lascívia própria dos viciosos.
Encontramos CHOQUE um pouco por acaso. Era um anão muito estranho, de andar trôpego e que andava sempre impecavelmente vestido. Parava todas as noites nas estacões de metropolitano debaixo do chão, onde tocava trompete a troco da generosidade de quem passasse. Certa vez vagueávamos nós pelos subterrâneos do metro, escondidos do mundo e da noite doentia sem lua, a espiar raparigas bonitas e a beber, e lá estava ele a tocar. Deitámo-nos no chão, em círculo à volta dele, e ficamos a ouvir a estranhíssima melodia que ele soprava no trompete. Trocámos álcool e objectos inúteis como pentes partidos e armações de óculos e depois perguntamos-lhe se ele queria juntar-se a nós e ao bando. Ele tocou que sim. Nunca disse uma palavra e nunca chegamos a saber se ele alguma vez disse alguma. Por enquanto fala unicamente pelo trompete, e da teia de sons por ele urdida já conseguimos captar o sim e o não, os palavrões que toda a gente conhece e os gemidos daquela infinita melancolia de quem tem um passado obscuro e impossível de reparar.
O último a entrar na banda foi POR. Estava na fila da frente num concerto que demos junto com os I have Santa Claus in my refrigerator, os Lunar freeks and the maneaters e os I scream Ice cream. Esteve sempre de olhos muito abertos e espantados, e no final dirigiu-se a nós, mais precisamente a CHOQUE, porque julgava que ele era um anjo e insistiu muito em ver-lhe as costas nuas para verificar se tinha asas. Vendo que estava enganado sentou-se desapontado e contou-nos a história da sua vida enquanto emborcava a última garrafa. Pediu mais Vodka. Muito Vodka. Se CHOQUE não era um anjo ao menos o Vodka era bem real. Procurava estabelecer contacto com eles através de um rádio de ondas curtas e através do qual já ouviu vozes e murmúrios celestiais vindos directamente do éter, aprendeu coisas inenarráveis e visitou mundos estranhos sem nunca sair do mesmo sítio.
Vê anjos POR todo o lado. In heaven everything is fine. Anjos enforcados nos postes de iluminação com os nomes das mulheres que amaram escritos a letras garrafais com o seu próprio sangue POR todo o corpo. Anjos completamente bêbados de amor, que de tão bêbados que estavam deitavam fogo a si próprios e atravessavam a noite escura ardendo como um cometa, deixando atrás de si um rasto de cinza celestial. Anjos disfarçados de condutores de autocarro; disfarçados pelo rabo de cavalo, pelos óculos escuros e POR um blusão preto Heavy Metal. Anjos na forma de uma criança de cabeça esmurrada de sangue a gritar o céu como quando uma mulher dá à luz; de uma mãe, que depois de amamentar debruça-se à janela a olhar o céu e as estrelas com um triste brilho húmido nos olhos; de um mendigo barbudo e cicatrizado no meio dos caixotes de lixo que procura estrelas cadentes e as encontra na forma de lâmpadas fundidas.
Em boa verdade era apenas mais um falhado, um perdido da vida como todos nós, tentando ler-lhe os sinais, rastejando para lado nenhum, apalpando o seu caminho em demanda de um outro lugar, só nosso, sempre insistindo em apreender os contornos indefinidos da realidade pela lente distorcida do fundo da garrafa. Além disso tocava bem bateria. A partir desse momento passamos todos a andar à procura de anjos e acho que foi assim que eles entraram na minha vida e de lá nunca mais saíram.

When angels speak of love.


Uma vez demos um concerto num bar só para cegos. Sentavam-se aos grupos de dois e três nas mesas redondas, impecavelmente vestidos e de óculos escuros, fumando charutos cubanos e bebendo bebidas exóticas e perfumadas, com as bengalas brancas apoiadas na perna direita. CHOQUE chegou atrasado, já meio tocado pela bebida, nó da gravata descentrado, camisa desfeita, fato e chapéu amarrotados e emitindo um som em surdina com o trompete como uma desculpa envergonhada. O concerto foi estranho, os tipos do público eram estranhos e não paravam de aplaudir batendo com as bengalas nas mesas e marcando o descompasso. TKO ainda mandou-os fornicar com as mãezinhas deles mas a única resposta que obteve foi um morno vai tu e mais bengaladas na mesa. Raio das bengalas. “São anjos,” disse POR, “grupos exploratórios em recolha de informações. Abandonaram as asas para não serem reconhecidos. Os olhos são lágrimas de Deus e os cabelos foram tecidos quando ainda não havia Tempo. Desmontaram os seus sonhos peça POR peça e hoje voltam para o céu em barcos a remos.” Acabamos o concerto e eles saíram ordeiramente, falando uns com os outros por murmúrios e fazendo gestos obviamente secretos com as mãos.
NU foi receber o dinheiro do dono do bar às traseiras, um chinês de calças brancas, cabelo oleoso e um problema bastante irritante na fala, mas acabou por chatear-se com o tipo porque ele não queria pagar o combinado. Num instante já estava em cima dele a esmurrar-lhe a cara com aqueles punhos ossudos e foi com muito esforço que o arrancámos de cima do filho-da-mãe do china. Antes de o deixarmos estatelado no chão, ainda lhe fanamos o dinheiro do casaco e o TKO ainda teve tempo para lhe pontapear mais uma vez a cabeça – “Esta é pelo piano desafinado!” Saímos para a noite húmida e histérica e a lua enchia o céu – “Xiça! Qu’ela hoje ’tá bonita como tudo,” disse o KOCK, agarrando-se às partes. Descemos às profundezas da cidade cão e mergulhamos na sua escuridão espessa para desbaratarmos o dinheiro em todo o tipo de líquidos corruptos, desde cerveja até detergente, passando por graxa contrabandeada e aftershave para a barba (POR ainda fanou uma garrafinha de tintura de iodo mas bebeu-a sozinho, o egoísta), para bebermos até rebentar e de uma vez por todas darmos o salto para o Outro Lado, para que o álcool roto fosse o comburente para um sonho mais amplo, contendo todas as ilusões e promessas e contaminasse a realidade, moldando-lhe a forma e sentido, apagando e desmentindo de uma vez por todas o mundo estúpido e brutal por onde nos arrastávamos.
A meio da noite andamos à tareia quando CHOQUEamos com um grupo de bêbados e prostitutas. Já nem me lembro porque é que começamos à pancada. Já não me lembro de muita coisa, mas o facto é que num instante, talvez em resposta a algum sinal (uma piscadela de olhos? O sacar de uma navalha?), já estávamos todos uns em cima dos outros, engalfinhados aos murros, cotoveladas, pontapés e dentadas, usando de cacos de vidro, latas de cerveja, de caixotes do lixo e de tudo o que viesse parar à mão para sem dó nem piedade acabar com os tipos. Ganhamos a guerra. A rua ficou juncada de corpos partidos e espirrados de sangue. KOCK encontrou uma prostituta desmaiada contra um caixote do lixo, de pernas abertas, mamilo à mostra e canto da boca a sangrar. Tinha os olhos como se fossem Luas cheias. Beauty lies in the eyes. Já estava a desenvencilhar-se das calças, pronto a saltar para o meio das pernas dela quando se ouviram as sirenes da polícia. Desatamos todos a correr dali para fora aos tropeções. Acabamos a noite a fazer coisas impossíveis das quais eu guardo apenas uma recordação vaga e confusa. Flutuamos como fantasmas pela noite vaporosa, perseguidos por candeeiros pálidos e pelas nossas sombras desproporcionadamente grandes. Trocamos murros com os nossos reflexos e dançamos em cima de carros abandonados, vomitamos o estômago e a vida e arrastamo-nos para dentro do metropolitano, debaixo do chão e escondidos do mundo, para ali ficarmos a dormir, uns em cima dos outros como náufragos que éramos, em cima de uma jangada à deriva.

Banda Sonora: Tom Waits – Is there anyway out of this dream? Sun Ra – When angels speak of love. P. M. Dawn – Reality used to be a friend of mine. David Lynch – In heaven everything is fine. Sonic Youth – Beauty lies in the eyes.


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