terça-feira, agosto 29, 2006

 

Fragmentos de um Discurso do Silêncio

Comunicação vem do Latim communicatio, tornar comum, etc. Mas o que é que pode haver de comum entre mim e quem quer que seja, onde quer que esteja, senão a aguda consciência de sermos fantasmas, presos entre a Vida e a Morte, à procura das nossas vozes para reconstruir de volta o silêncio inteiro?


Sprich auch du,
sprich als letzter,
sag deinen Spruch.

Sprich —
Doch scheide das Nein nicht vom Ja.
Gib deinem Spruch auch den Sinn:
gib ihm den Schatten.

— P. Celan, Sprich auch du.

Salomão afirma que há um tempo para tudo: um tempo para falar e um tempo para ficar calado. O meu tempo para separar o Sim do Não já passou e a haver diálogo só pode ser entre Eu e Eu, ou, o que é pragmaticamente a mesma coisa, entre Eu e Deus. E qualquer Cristão confirmará que para se poder chegar a ouvir a Voz de Deus primeiro é preciso sobreouvir (overhear) o Seu Silêncio.


Where now? Who now? When now? Unquestioning. I, say I. Unbelieving. Questions, hypotheses, call them that. Keep going, going on, call that going, call that on.

Isto é o início de The Unnameable, e nele S. Beckett coloca o falar ao nível da compulsão neurótica. É famosa a analogia em Totem and Taboo que Freud faz entre a arte mimética e a histeria. Seguindo ainda Freud, podemos estender a analogia e descrever o Falar como a necessária doença do espírito. Aquilo que não é de uso para ninguém certamente é dispensável e o móbil final para perturbar o Vácuo com os pedaços da minha Voz só pode ser uma qualquer versão do Orgulho e da Vaidade.

Até agora só citei ateus e incrédulos. Certos heresiarcas mantiveram que a criação se deu por retração (witdrawal): a ideia é exposta por J. L. Borges nalgum dos seus escritos. Como teologia, a proposição é, no mínimo suspeita, e inevitavelmente decai nas paródias demónicas em que o Demiurgo cria o Mundo num momento de distracção de Deus. Apesar do Erro, a proposição é, a posteriori, tautologicamente correcta como confirma a implicação de Jesus de que a Vontade do Pai não é feita na Terra. O Tempo Humano começou na Queda. Entre a Liberdade Divina e a Ordem Natural, onde compulsão e contingência dominam, só pode estar a Ausência de Deus. Falar é preencher o Vazio e, como tal, é o acto de um criminoso a apagar as provas do seu próprio crime.

Is this going somewhere?

Swift, essa curiosa espécie de crente, sustêm no Discourse concerning the Mechanical Operation of the Spirit que o Falar não passa de uma Expulsão de Vento pelo buraco a que chamamos Boca, em tudo similar à Expulsão de Vento pelo buraco a que na linguagem vulgar damos o nome de Cu. Em ambos, a operação é Bombástica e Cheira Mal. Felizmente que o Vento assim expulso, mesmo Aviltando o Homem e Ofendendo o Nariz, depressa se confunde com o próprio Ar. O que fica é apenas o Embaraço.

A loucura final de Swift é mera ilustração desta intuição, porque toda a loucura é causada por um excesso de realidade.

Os anjos não discursam; os anjos cantam.

Num pequeno estudo, Quaestiones hebraicae in Genesin, S. Jerónimo, seguindo a escola neo-platónica de Alexandria, tem um pequeno comentário sobre o capítulo 11 de Gênesis e a Torre de Babel. S. Jerónimo nota que se a linguagem humana podia ser confundida é porque ela própria já era uma confusão desde a Queda; a operacção de Deus é rigorosamente redundante. O sentido profundo é que, se, para citar Humpty Dumpty, as palavras significam aquilo que nós queremos, então é porque não significam nada. Uma palavra só pode significar outras palavras, ou, para citar Jesus (a citar Isaías), "Pois o coração deste povo tem ficado embotado e seus ouvidos têm ouvido sem reacção, e eles têm fechado os olhos; para que nunca vissem com os olhos, nem ouvissem com os ouvidos, nem entendessem com os corações e se voltassem, e eu os sarasse."

A piedade natural da alma.

Façamos a justaposição entre um fragmento dos Padres do Deserto e um fragmento de Kafka:


It was said that there were three friends who were not afraid of hard work. The first chose to reconcile those who are fighting each other, as it is said, "Blessed are the peace-makers". The second chose to visit the sick. The third went to live in prayer and stillness in the desert. Now in spite of all his labours, the first could not make peace in all men's quarrels; and in his sorrow he went to him who was serving the sick, and he found him also disheartened, for he could not fulfil that commandment either. So they went together to see him who was living in the stillness of prayer. They told him their difficulties and begged him to tell them what to do. "Look at the water", and it was disturbed. After a little while he said to them again, "Look how still the water is now", and as they looked into the water, they saw their own faces reflected in it as in a mirror. Then he said to them, "It is the same for those who live among men; disturbances prevent them from seeing their faults. But when a man is still, especially in the desert, then he sees his failings."

Não é necessário saíres da tua casa. Continua sentado à mesa, ouve. Não ouças sequer, espera simplesmente. Não esperes, sequer, sê absolutamente solitário, absolutamente silencioso. Então o mundo irá oferecer-se a ti para se fazer desmascarar, não pode agir de outro modo; sob o teu encanto, desenrolará os anéis a teus pés.

A continuidade entre os Padres do Deserto e Kafka é clara. O que triunfa em ambos é o Espírito Ascético, que é a resistência à compulsão à acção, ou a Kenosis da Vontade. Kafka, num outro aforismo, escreve que um dos meios mais eficazes de sedução do Mal é o convite à luta, como a luta com as mulheres, que acaba sempre na cama. Igualmente iluminador é Pascal, que diz que muitos dos males do mundo seriam evitados se os homens aprendessem a ficar quietos. O que todos eles forjam é a aliança íntima entre Quietude, Solidão, Silêncio e Sublimidade.


Here is your cross, your nails and your hill
And here is the Love, that lists where it will.

— L. Cohen, Here it is.

O evangelho de S. João abre esplendorosamente com a descrição de Cristo como a Palavra, Logos, Ordet. Continua, afirmando que o Mundo não O conheceu; que veio ao seu próprio lar, mas os seus não o acolheram. A tirada pode ser anti-semítica, mas a verdadeira explicação é que os "seus", os Judeus contemporâneos de Jesus, são os Representantes da Humanidade. Nós não seríamos melhores.

O modelo típificado por Jesus, é, não o Começo como Palavra, mas o Fim como Silêncio. A Paixão até ao Golgota, o lugar da Caveira, cordeiro para a matança. Quando Pilatos lhe pergunta o que é a Verdade, como é que Jesus responde? Silêncio. A Verdade é Silêncio e não pode ser apreendida fora deste.

Nenhuma outra justificação é necessária.



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