quarta-feira, novembro 30, 2005
Evangelho perdido
Há um homem que vagueia acima dos telhados mesmo abaixo das nuvens do céu. Debaixo do impermeável está nu, no bolso esquerdo carrega um pequeno rádio de ondas curtas para ouvir as notícias da Outra Cidade e no bolso direito uma pequena agenda e um lápis roído na ponta. De pé, em cima de um banquinho de madeira, com a lata de sardinhas pronta a receber a esmola do dia, prega ao vazio e à Cidade, num país macilento que é uma nódoa de mosca verde num mapa de um Mundo Redondo a rebentar pelas costuras com o peso de mais de seis mil milhões de almas. Passou trinta anos sozinho a olhar de uma janela num trigésimo andar para as pessoas tão minúsculas cá em baixo, para agora proclamar indignadamente a nossa falência miserável, que todos nós estamos fragmentados e que ele é a fita adesiva para nos reajuntar de novo. Apanhou doze pombos feridos e esfolados e criou-os com insistente paciência. Deixou crescer a barba onde eles puderam fazer ninho e deixou de tomar banho porque já estava limpo. Para o fim dos seus dias decidiu alimentá-los com o sangue picado da ponta dos seus dedos. Para si mesmo apanha o que a Providência deixa nos cantos das ruas e nos caixotes do lixo. Quando completou os trinta e três anos, sentenciou que a Lei estava cumprida, arrancou as folhinhas da sua agenda e espalhou-as ao vento como se fossem fragmentos de vidas perdidas. Libertou os doze pombos e depois regou-se a si mesmo com gasolina e atirou-se de cima do telhado, a arder como uma tocha humana a fuzilar a escuridão da noite.