quarta-feira, junho 29, 2005

 

A preto e branco


Começo por agradecer a gentileza e a paciência com que Pedro Mexia respondeu ao meu pedido de esclarecimentos (para usar de um estafado cliché) a um post seu. Podem ver a transcrição do meu email bem como a resposta em A Preto e Branco (2). O post original está em A Preto e Branco.

Não gosto de polémicas, muito menos públicas; sou demasiado impaciente para debates. Mas afinal de contas, fui eu que disparei a primeira salva e pedi uma resposta pública (que raio é que me passou pela cabeça para introduzir aquele parêntesis?), pelo que é somente justo que a resposta seja também pública.

Detesto parecer um inquisidor (olhar de aço, a espumar da boca, punhal na mão direita, Bíblia na esquerda), mas o post de Pedro Mexia deixou-me com mais perguntas do que propriamente respostas. Isto reflecte-se no exagerado número de pontos de interrogação abaixo: vejam-nos não como uma tentativa de prolongar a discussão ad aeternum (Deus nos livre!) mas como uma genuína tentativa de entendimento. Indo contra o meu Herói, o Dr. Samuel Johnson ("Questioning is not the mode of conversation among gentlemen"), e com as minhas desculpas antecipadas pela impertinência, aqui vai:


Caro Gonçalo: Digo que o cristianismo «propõe um modelo de comportamento». Digo e repito. O Gonçalo acha estranha a expressão. Que parte da expressão? Imagino que seja o «propõe». Mas se não é uma proposta é exactamente o quê? Não certamente uma imposição. A «curiosa» expressão é usadíssima por padres e leigos (nada «progressistas») para indicar que o cristianismo tem determinados valores e que os apresenta a quem os quiser seguir (livremente). Não encontro nisso nenhum aspecto curioso.

Certíssimo, só é Cristão quem quer. Mas não é essa a minha dúvida. A minha dúvida é a partir do momento em que alguém afirma ser Cristão (volto a relembrar: Cristão = seguidor de Cristo) que sentido tem dizer que a moralidade sexual (santidade no casamento, castidade fora dele, etc. - deixo de fora preservativos e quejandos, que são outros quinhentos escudos cuja verdadeira relevância só se fez sentir muito recentemente na história Cristã) é uma proposta de "modelo de comportamento"? Cada Cristão responde solitariamente perante Deus pela sua conduta, mas que sentido tem afirmar que se é Cristão quando não se aceita os ensinamentos de Cristo e dos Apóstolos? Cristão é um qualificativo com implicações, e eu não consigo separar a palavra "Cristão" da palavra "obediência." Qual é para si exactamente a fronteira a partir da qual em que a palavra "Cristão" deixa de qualificar o que quer que seja e passa a ser palavra ôca, como "sino que retine"?


Diz o Gonçalo que a moralidade cristã foi sempre a mesma. Desculpe, mas é uma afirmação sem sentido. Em dois mil anos de mundo e nos quatro cantos do mundo a moralidade cristã (e a moralidade sexual em especial) foi imensamente mutável, de acordo com problemas e sensibilidades particulares, com numerosas disputas teológicas, com alterações na sociedades. Há com certeza princípios básicos que não mudam, mas a adaptação ao concreto assume formas tão diversas que supor que temos a mesma exacta moralidade de um cristão africano ou de um cristão renascentista é um delírio. E a ideia de que temos a mesma moral sexual de Abraão, um delírio total.

A moralidade sexual que Cristo pregou não foi propriamente inovadora ou revolucionária. Os contemporaneos de Jesus, em geral, reconheciam-na como sua. Em mais do que um sentido, não passam de lugares-comuns, comuns porque genuinamente partilhadas pelo grosso da humanidade. É certo que não temos a mesma exacta moralidade de Abraão; Abraão teve mais de uma mulher (o que, pensando bem, até nem é muito diferente do que se passa hoje em dia). O mesmo direito foi continuado na Lei judaica. Mas o que eu disputo e nego é que "Há com certeza princípios básicos que não mudam, mas a adaptação ao concreto assume formas tão diversas que supor que temos a mesma exacta moralidade de um cristão africano ou de um cristão renascentista é um delírio." Formas tão diversas?! Admito que o meu conhecimento de história é muito limitado, mas quais são os exemplos Cristãos em que a "adaptação ao concreto" assumisse formas muito diversas das de hoje? Que se consigam encontrar tais exemplos não me espanta. Parafraseando o Outro, a história é um pesadelo, infindável e com os seus monstros muito próprios, e se procurarmos o suficiente até encontraremos Cristãos ateus, mas qual a relevância desses exemplos?


Quando o Gonçalo escreve: «o cristão é, literalmente, um seguidor de Cristo - tudo o resto são tretas», parece que para si tudo é imediato e evidente no cristianismo. Parece que encontra sempre para todos os problemas uma visão transparente e cristalina (e a única admissível). Coisa sumamente estranha, tendo em conta que os teólogos e mesmo os santos andam a discutir tudo e mais alguma coisa (por vezes com grande violência) há vinte séculos. Nem São Paulo e São Pedro tinham opiniões semelhantes nalguns assuntos. E se dois apóstolos podem discordar, eu também posso com certeza discordar de si (e vice-versa). Sem atestados de apostasia.


Isto faz-me lembrar uma passagem de G. K. Chesterton algures, em que ele garante a sua tolerância para com todas as opiniões e dogmas dos seus adversários, mas que não lhe peçam para ter respeito ou tolerância para com as dúvidas e preconceitos. E o Pedro Mexia nunca tem inquietações sobre as suas inquietações? O dever de um cristão não é tanto entender ou compreender plenamente a mensagem de Cristo (tarefa admitidamente impossível) mas, naquilo que compreende e entende, obedecer. E à força de tanta dúvida e confusão, só me resta perguntar se ainda resta alguma coisa para obedecer. Posição muito confortável essa de ficarmos pelo plano das ideais, do que não é "imediato" nem "evidente".

Quanto a mim, não, não tenho uma resposta imediata e transparente para todas as perguntas concebíveis e imagináveis, nem sequer para muitas delas. E admito que é a minha falta de sofisticação moral que me impede de ter (muitas) dúvidas quanto aos princípios de moral sexual (santidade no casamento, castidade fora dele, etc.). Mas volto a citar as palavras de Jesus Cristo:


No entanto, eu vos digo que todo aquele que se divorciar de sua esposa, a não ser por causa de fornicação, expõe-se ao adultério, e quem se casar com uma mulher divorciada comete adultério.
— Ev. S. Mateus 5:32

Que dúvidas é que há sobre este texto? Como é que quer que eu o leia? Achar que ele não tem importância ou que é de alguma maneira menor, é uma posição difícil de manter. Toda a tradição Cristã confirma-o. Mais uma vez: onde é que na história do Cristianismo há exemplos relevantes de se entender este texto ou a moral sexual (santidade no casamento, castidade fora dele, etc.) de maneira diferente? Virando a pergunta ao contrário: se alguém cometer adultério, para usar as palavras do texto citado, esse alguém cometeu um pecado? Precisa de se arrepender? Precisa de perdão? Precisa de perseverar em não repetir o comportamento?

(reitero as minhas desculpas por estar a disparar perguntas como se fosse uma metralhadora)

O Pedro Mexia lembra-se certamente da passagem do Evangelho de S. João, em que os Doutores da Lei e Fariseus pretendem apedrejar uma mulher acusada de adultério. Se de facto, o adultério não é pecado, então parece-me que toda a passagem, uma das mais belas dos Evangelhos (que digo eu! de toda a literatura!), não faz sentido nenhum. Misericórdia, compaixão, perdão, etc., só fazem sentido onde de facto há falta e pecado. Esta é, para mim, a substância da questão. Tudo o resto vem depois.


Um cristão é aquele que está unido a Cristo pela sua fé. E a fé tem uma dimensão puramente transcendente, inexplicável e que, como o Gonçalo recorda, não é passível de nenhum discurso intelectual satisfatório. O mais são preservativos e outras mundanidades que importam muito mas que não importam nada perante a dimensão espiritual.

Considero as matérias de fé mais importantes que as matérias de costumes. O Gonçalo, como outros católicos que me têm excomungado na blogosfera, acha que não. Está no seu direito. Mas espero que me reconheça o direito de ter uma opinião diferente da sua.


Para responder à sua irritação, e apesar do tom da minha Voz por vezes trair-me, não tenho o mínimo desejo de o excomungar (mas talvez fosse oportuno lembrar que Cristo deu autoridade aos Apóstolos para o fazer). Para começar, sou Cristão mas não de persuasão católica, pelo que não tenho nem o direito, nem a autoridade nem a moralidade para lhe passar um atestado de apostasia. "Mero Cristianismo" é o nível em que eu desejo manter-me nesta questão. Mas enfaticamente, matérias de moral não são matérias de costumes. Os costumes mudam no espaço e no tempo, a moral não. A minha injunção é que a moral sexual não muda (santidade no casamento, castidade fora dele, etc.) e que a verdade foi revelada de uma vez para sempre. E se é certo que a vivência da Verdade precisa ser adaptada ao momento pessoal e histórico concreto, não consigo perceber exactamente o que é que pretende adaptar na moralidade sexual. Acha que se deve enfatizar a compreensão pelas circunstâncias específicas de cada um? Talvez; a questão posta assim desta maneira geral nem sequer é passível de ter uma resposta concreta. Mas deixar de chamar os bois pelos nomes (pecado, por exemplo), ou iludir as questões morais, apenas aumenta a confusão, que apesar de ser um estado mental que muitas pessoas, inclusive Cristãos, apreciam, não faz propriamente o meu estilo. Mais, acho que devemos a Ele, devemos a nós mesmos, procurar a luz e a claridade.

Há sempre algo de desagradável em falar de pecados, moralidades e deveres; se todos tivéssemos asas e fôssemos perfeitos seriam outras e bem melhores as Palavras que sairiam das nossas bocas. Mas este é o Mundo em que vivemos e nós somos o que somos, e parece-me a mim que precisamos de ser constantemente (re)lembrados da guerra espiritual que todo o Cristão precisa de travar: em primeiro lugar contra si mesmo, mas também contra o Mundo e contra o Inimigo.

Talvez o que nos separa nesta questão seja mera ênfase e terminologia: pessoalmente, duvido. Talvez eu esteja errado; e, como é óbvio, o Pedro Mexia tem todo o direito de manter a sua opinião; isso, para mim, nunca esteve em dúvida. Ultimamente, como tão bem lembrou, nós somos responsáveis é perante Ele, e é Ele que nos julgará. Rezo para que Ele também nos ilumine.



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