segunda-feira, maio 30, 2005

 

Walpurgisnacht


Como tenho postado muito pouco, aqui fica um post para acabar de vez com todos os posts, um post que ninguém irá ler até ao fim. Está dividido em duas partes: a segunda é uma história que eu escrevi já há uns bons anos e a primeira uma (longa) introducção a ela. Os meus leitores (Olá leitores! Como vão leitores? Silêncio por resposta) gostarão certamente do seu esdrúxulo e delirante terrorismo verbal e do enredo simples, embora não tão linear como parece à primeira vista. O último parágrafo é inegavelmente muito divertido (e este comentário também — mas não fui eu que o escrevi).

Para quem não saiba, Walpurgisnacht é alemão para a Noite de Walpurgis, em honra da Santa Valburga (710-779). Foi canonizada em 1 de Maio e o nome dela ficou por isso associado às festividades pagãs ligadas à primavera — o 30 de abril é hoje uma espécie de feriado de carnaval na Suécia e na Finlândia. Na Alemanha é o dia em que as bruxas se reúnem no topo do Blocksberg, o pico mais alto das montanhas Harz, onde celebram o retorno da Primavera.

Quando escrevi a história ainda não tinha lido o Fausto de Goethe e a cena de nome homónimo. Hoje, agora que já a li, posso dizer que fiquei exactamente na mesma. O que eu tinha lido na altura era o Montanha Mágica do Thomas Mann (que apesar do que eu escrevo a seguir, também não me encantou por aí além) onde há um capítulo intitulado, pois claro, Noite de Walpurgis, passado num sanatório de tuberculosos nos Alpes, onde os doentes, com chapelinhos de papel e cornetas comprados no cubículo do porteiro coxo, e a lançar serpentinas no ar, fazem uma festa de carnaval e o nosso herói, Hans Castorp, afundado numa poltrona tem um diálogo que é como um sonho com Mme. Chauchat. Da primeira vez que Hans Castorp a viu, descreveu-a da seguinte maneira:


Era uma senhora que atravessava a sala, ou melhor, uma rapariga, de estatura média, vestida com uma camisola branca e saia de fantasia, com cabelos ruivos que usava com simplicidade numa trança enrolada em volta da cabeça.

Senhoras e senhores, apresento-vos Mme. Clawdia Chauchat, "uma senhora encantadora" de origem Russa! Nesta altura, Hans tinha-a visto à distância, mas eu posso acrescentar que ela é possuidora de um par de olhos azuis (touché!). Settembrini quando a vê no meio da festa, com um vestido de seda negro que lhe deixavam os braços de uma cor muito branca nus até aos ombros, diz que é Lilith, a primeira mulher de Adão (consultar a Cabala para mais informações). O nosso herói, Hans Castorp, de olhos raiados de vermelho e a Mme. Chauchat de olhos azuis, dois organismos doentes e envenenados, têm um diálogo em francês, matéria prima de qualidade para qualquer onirologista. Cito a seguinte frase:


Ça suffit... parler. Pauvre affaire! Dans l'eternité, on ne parle point. Dans l'eternité, tu sais, on fait comme en dessinant un petit cochon: on penche la tête en arriére et on ferme les yeux.

A referência é a um jogo que os doentes jogavam, em que tinham de desenhar um porquinho de perfil com os olhos fechados. Falam de retratos interiores, fotografias a raios-X dos pulmões. Oh, l'amour, tu sais... le corps. l'amour, la mort, ces trois ne font qu'un. A Santa Trindade do Amor, do Corpo e da Morte. Substituindo o corpo pela Beleza e a elegante fórmula ficaria mais ao meu gosto. Et laisse moi périr, mes lèvres aux tiennes...

A história que subsequentemente escrevi tem muito pouco ou mesmo nada a ver com a Noite de Walpurgis, porque, como acontece com os sonhos, a realidade intrometeu-se no meio, mas alguma da inspiração inicial veio dali e daquele diálogo onírico.

Nota: Abaixo, no texto, devia aparecer o símbolo de uma caveira (símbolo do veneno) mas a única coisa que aparece no meu browser é um ?. Estou a usar "▝" que é o código que aparece nas tabelas dos Standards do Unicode. Alguém sabe o que é que está errado? Imagino que devo ter que introduzir algum Html para indicar a mudança de "character encoding" mas não sei como é que se faz isso.


Walpurgisnacht



A guilhotina do obturador faz um corte transversal no Tempo e captura uma fatia de Espaço, um pedaço de vida inanimada, tão bidimensional quanto as almas dos retratados. O padrão de luz, antes de se dissolver por completo na paisagem, atravessa a objectiva, é refractado, recomposto e recapturado, impressionando depois o filme sensível. Este é levado ao abrigo da claridade para uma câmara escura (a correr, por favor, antes que se reduza a cinzas), onde é submetido a um banho químico de sais de prata para fixar na película os corpúsculos de luz que se desprenderam de corpos e roupas e gestos. Do negativo obtêm-se as fotografias positivas, que o empregado de nariz adunco entrega ao cliente de nariz achatado, encerradas numa carteira de papel e com o bónus de um rolo fotográfico, para que este volte outra vez, com mais e mais fotografias para revelar.

Estão todos aqui retratados. O Engraçadinho que fica sempre no meio do Círculo a exigir toda a atenção para os seus dichotes imbecis. A Cadelinha Amestrada. O Jovem esgrouviado de faces chupadas e olhos de vidro embaciado. O Tubarão junto com o Vígaro, disfarçados de seres humanos pela gravata, pelo sorriso adstringente e pelo corte de cabelo que custou um mês do meu salário. Todos fotografados no mesmo estilo: de pé, a meio-corpo, a três quartos com luz teimosa, a sorrirem para o ridículo da câmara, abraçados a alguém ou agarrados a algum copo. Todos juntos, todos alegres e contentinhos, para mais uma festinha jovial e mundana.
Devo dizer que odeio estas festinhas estúpidas e mesquinhas, por onde passeamos de copo na mão, distribuímos sorrisos a torto e a direito, e entabulamos conversas faz-de-conta, tentando enganar o tédio e o aborrecimento. Onde no fim regressamos sozinhos a casa, ouvimos o eco dos nossos próprios passos no corredor, e acabamos a noite a ver televisão ou a fazer amor connosco mesmos.
E que faz esta digníssima fraude aqui no meio? Pelo menos este aqui não tenta enganar ninguém... Nesta fotografia podemos ver um par de namorados de mãos dadas. Oh! É tão bonito... (São uns estupores de uns idiotas). Nesta outra, uma tipa gorda e feia, e que devia fazer alguma coisa em relação àquele buço viril a despontar nervosamente entre o lábio superior e o nariz, naquela, um simulacro de putefiazinha descarada e espalhafatosa, com lábios que mais parecem um desentupidor de canos e péssimo gosto para escolher roupas. A esta altura, um miserável palhaço de pobre pantomina, ansioso por entrar em palco, estica a cabeça a um canto da fotografia, a cara como uma folha lisa e branca com três rasgões, um deles idioticamente sorridente, e pergunta O quê? Mas tens de compreender, ainda não é o momento de o estafermo entrar em cena, aos trambolhões, estapafúrdio e com um pontapé no traseiro. Não agora. Não depois, não nunca. E é por isso que leva uma cotovelada violenta e numa queda burlesca cai para o chão, para debaixo da mesa que é o lugar dele, feito numa bola de papel amassado. É um verdadeiro Smiley e se tivesse nariz, um nariz humano de pele e osso, daqueles que se podem esmurrar com gosto e aplicação, estaria com toda a certeza a sangrar.
Também temos uma fotografia da multidão anónima reunida em grupinhos, por estratos de imbecilidade, pavoneando a alegria postiça, fazendo um esforço para divagar superficialmente sobre o desbotado de alguma memória conjunta ("Aquela festa..." "Aquelas férias no..."), ou trocando preços de carros e de telemóveis sempre prontinhos a telefalar. Se nos juntássemos a um destes grupos vê-los-íamos a ladrar, as mandíbulas a triturarem as palavras e a cuspirem inanidades em raspas de diálogos desconexos e com a ortografia corrigida: Ah! Ah! Ah!... Olá, O.! Não me acotoveles, 'tá bem!? (Ao longe, o estilhaçar de um vidro, um grito) O que é que se passa? Oh, está bem. Como estás, O. (Palhaço)?! O quê? Ah! Ah! Ah! Ah! (entredentes: Idiotas!)
Aliás, todo o sítio estava apinhado de piratas; flibusteiros levando uma vida práctica e saudável como um rolo de papel higiénico, cultivando a saúde física, a juventude e a indigência mental. Só nesta fotografia estão três espécimes exemplares desta casta, três sátiros de cascos escondidos em sapatos de marca e homogeneamente uniformizados: a farda de oficial de diligências ou de fiscal dos transportes públicos. Os perfumes não enganavam: cheiravam a Solteiros, a Abandonados, a sémen a azedar nas bolsas testiculares. À esquerda temos um daqueles jovens sonsos de cabeça redonda e rosto espalmado como uma bolacha, borbulhenta e viscosamente tímidos, que dão empregados fiáveis e leais, mostrando uma precisão mecânica muito útil para certas tarefas repetitivas (selar caixas de cartão, colar selos usando a língua, etc.). À direita temos um perfeito exemplar do jovem solteiro, abutre à procura de companheira-fémea-escrava, de óculos aerodinâmicos e relógio gordo e feio de bracelete dourada no pulso peludo, a fazer escorregar a gravata entre o polegar e o indicador, de peito cheio de autocontentamento, piada fácil na ponta da língua e gargalhada intermitente, a olhar vagamente por cima dos ombros das pessoas e a registar nas sucessivas camadas da memória triste e cinzenta, a imagem em movimento de toda a mulher dentro de certa faixa etária e de aspecto agradável que passe, e que não apresente no anelar da mão esquerda uma anilhazinha de ouro com a sua etiqueta de identificação: Ocupada. Nesta fotografia, logo nesta, esqueceu-se de apresentar a sua sofisticada e cara câmara fotográfica, a sua mais fiel companheira, o seu sexto membro. As más línguas diriam o único viril, mas eu não sou má língua, eu não sou maldoso.
E no meio, a liderar a bicharada, lá está ele, o Rei do Canil, o O. Bem sei que não é este o nome do teu namoradinho ridículo, mas quem manda aqui sou eu, e eu acho que este nome lhe assenta perfeitamente. Um ovóide O de ovo estragado, porque é um nOme curtO, exactamente como o seu cérebro, expressando a redonda vacuidade da personagem, destilada à nascença e com um buraco mole de quem levou um tiro na redundante barriga. Meia libra de um nariz perdigueiro entupido de arame e verdete, dois buraquinhos no osso reco ocupados por duas uvas azedas a fingirem de olhos, a racha de uma boca e a esfregona de uma peruca louca, completam a retratografia do sujeito. Mas ainda não acabei, não, senhor. Observemo-lo atentamente: bem penteado, barbeado, desodorizado, de fato engomado. Se virado do avesso, a etiqueta murmurará embaraçada "made in Turkey". Uma visita ao dicionário, a terceira edição do The Phenian Wake de 1975, imprimida nas tipografias Barknuckle & Co., edição dirigida por Jakobus Freuence, revela-nos que além de um civilizado e luxuoso país, habitado por poetas felizes e trovadores abençoados, "Turkey" também significa, não só peru GluGlu, especialmente aquele que é servido mutilado na ceia de natal a convivas entediados, mas também pessoa pomposa, emproada, afectada. Querido Jakobus! Os meus aplausos, os nossos aplausos, ao teu maravilhoso e correctíssimo dicionário!
Apesar do nome dele ser um artigo definido, ele é tão indefinido e sem forma como chocolate branco a derreter ao sol. O seu metro e oitenta de virilidade, "o sonho de qualquer adolescente," — ponhamos as coisas de um modo franco: o trapo do sexo intumescido, uma tromba de elefante a elevar-se ameaçadoramente nos ares, uma pistola apontada aos nossos corações — é coroado por um cérebro de troglodita de onde estão ausentes quaisquer inteligência, imaginação, ou curiosidade intelectual. Mas será que ele não tem nenhumas virtudes? Perguntas Tu. Será apenas um desprezível ele com o qual Tu desperdiças a tua vida? Não, é claro que ele tem algumas qualidades. Não sou nenhum insensível, muito pelo contrário, tenho usado da mais estrita imparcialidade ao descrever com rigor científico o estado mental do nosso amigalhaço palhaço. Por exemplo, reconheço que sabe ler e escrever, pelo menos o suficiente para ler números de telefone das páginas amarelas, decifrar os sinais de trânsito e, ao que me têm dito, mandar-te bilhetinhos idiotas. Sabe contar, embora tenha de usar os dedos das mãos, e a sua pobre cabecinha entre em parafuso ante a estonteante possibilidade de ter de usar os dos pés para concluir o seu exaltado esforço. Mas deixemo-lo em paz e continuemos a ver as outras fotografias, porque sinceramente, tudo isto é muito aborrecido.
Agora vê-se um bando de selvagens a dançarem. No meio destes broncos desajeitados é-se empurrado e acotovelado, fica-se com as mãos entorpecidas e os pés pisados, com os ouvidos massacrados pela lenga-lenga ofensiva que puseram a tocar já muito para além do ponto da não-audição. E sentado a um canto lá estou eu. A observar a cena sozinho, encolhido na cadeira, verde de enjoado, a roer as unhas e a consumir Absinto.

Mais uma cara bonitinha. De olhos semi-cerrados, e na fileira superior de dentes, entre o incisivo e o canino, um resto verde de comida. Nas pernas deixadas a descoberto pela reduzida indumentária vêem-se algumas manchas, que a má qualidade da fotografia e a discreta iluminação não deixam perceber se são nódoas negras ou sinais de psoríase — que digo eu, de cancros!
Emoldurado no mesmo quadro visual, está o O (outra vez ele!), sentado a olhar com gula priapesca para uma outra mulher, que o pudor do nosso artista deixou de fora dos limites físicos da fotografia. Naquela noite esperava ter uma conversa franca explicando-lhe que te amava desesperadamente. Que ele nunca te poderia oferecer o tipo de felicidade absoluta que só os amantes, os místicos, os loucos ou os bebés inocentes experimentam. Esperava confrontá-lo com o facto de a sua mera existência ser uma ignomínia, uma farsa de mau gosto; esperava ter um monólogo e meio com esta traquitana de ossos e instintos como ponta-e-molas. Já por várias vezes naquela noite tinha fabricado uma pistola com os dedos da mão e tinha-a apontado ao coração do nosso Inimigo. Fechava o olho direito a fazer pontaria, espremia o indicador e despejava sobre ele o inteiro conteúdo da minha pistola imaginária: seis tiros surdos — e em vez de cair redondo e morto, o títere continuava de pé, vivo e a esbracejar desajeitadamente. Era então que eu recorria à coronha do punho e rachava-lhe o crâneo. Ou talvez travar um verdadeiro duelo — o argumentum baculinum ainda é o meu argumento favorito para resolver disputas. Ele com uma faca na mão e eu de pistolas nas duas — acredito sinceramente que se deve sempre dar uma oportunidade aos nossos adversários, mesmo que eles não a mereçam. Mas a verdade é que abomino a violência, nunca tive uma pistola, daquelas que pesam na mão, sólidas e concretas, que fazem um estampido intolerável e abrem buracos na roupa de pessoas inocentes, e a simples visão de sangue causa-me tonturas e náuseas. Um sorriso nasce na minha cara. Lembrei-me agora que na nossa sociedade de economia capitalista e trabalho especializado, se podem comprar por uma módica quantia de dinheiro os serviços de um grupo, digamos de cinco ou seis pessoas, armadas de correntes de ferro e pés-de-cabra, e que travarão de bom grado o necessário duelo por mim, de preferência num beco escuro, longe do estorvo da polícia incompetente e inepta. O preço de coisas como o ódio e a ultraviolência é muito baixo e um cavalheiro nunca suja as suas mãos com trastes imbecis. Tenho que tratar deste assunto. Rapidamente.
Nesta outra fotografia temos em primeiro plano a parvinha da ☠ — o rosto dela sempre me fez lembrar o rótulo de uma embalagem de veneno para ratos — de sorriso grotesco e braços paralisados à altura da cintura. Junto dela eis o próprio Artista quando Jovem Orangotango.
E a parada de retratos prossegue, com a monótona sensaboria dos registos policiais ou dos arquivos de identificação. Pouco mais que um deplorável monstruário das diversas variações do rosto humano. Rostos planos ou simplesmente engraçados; quadrados, redondos ou oblongos; murchos, gretados ou sonambolescos; um par de olhos sem pecado e sem mácula e um nariz, dois lábios desenhando uma abreviatura cretina de um sorriso ou um esgar de nojo, deixando entrever a fileira de caninos brancos e as gengivas cor-de-rosa. Oh, mas este Orangotango é um verdadeiro artista do retrato!
Ei, espera aí! Não é este o gordo que... ah, se eu o apanho outra vez... Estava eu à espera de entrar na casa de banho quando, finalmente, abriu-se a porta e de lá dentro saiu este jovem (são só "jovens" neste raio de sítio, safa!) algo gorducho, com as faces congestionadas e a esfregar as mãos de contentamento seboso. Dirigiu-me um sorriso de aquiescimento (?!) ao qual a minha natural simpatia tentou corresponder da melhor maneira. Entrei e fechei a porta atrás de mim, aliviado por estar sozinho e poder reorganizar os pensamentos. Na sanita vi com horrorizado espanto uma poça de urina amarela exalando um fedor acre, ressumando a virilhas, a dieta descontrolada, a problemas da próstata... Saí como um louco, à procura do infame no meio da multidão. Devo ter tropeçado num tropeçolho qualquer porque revejo-me claramente a voar através do corredor, a agitar furiosamente os braços de gaivota na esperança de agarrar algo sólido e concreto (Uma mesa? Uma porta? Uma pessoa?), e só ter parado quando o necessário suporte se materializou na forma de uma parede!!!!!! uma dor uivante na testa e depois o chão. Já de pé, retomado o equilíbrio, sacudida a roupa, apalpada a testa, dirigi-me para a saída e olhei em volta. Ele já tinha desaparecido e, para dizer a verdade, já nem sequer me lembrava direito do rosto dele. Ao longe o O acenava-me com um copo — Uí, a minha testa... Voltei depressa para a casa de banho e fechei-me de novo lá dentro. Puxei o autoclismo, passei a cara por água, as mãos pelos cabelos e olhei-me ao espelho. Santo Deus! Estava mesmo com um aspecto lixado... Abri os armários. Ora deixa cá ver que instrumentos de envenenamento lento e agonizante temos à disposição... Uma desilusão: nada. Nada, a não ser que alguém saiba de algum uso para uma caixa de tampões.
Mas não são só fantoches animados ou filisteus enfadonhos que têm a sorte de verem o seu retrato tirado. Também objectos inanimados foram fotografados, além de certas paisagens que combinam o desperdício com o vácuo humano. Eu sei que tudo isto é muito aborrecido, mas tem um pouco de paciência e deixa-me exemplificar: à minha frente está uma fotografia panorâmica de um parque de estacionamento improvisado, para onde muitos convidados fugiram para fazerem coisas impronunciáveis a coberto da escuridão. Também eu, farto daquilo tudo (quase tanto como de ver estas fotografias), farto de disfarçar o aborrecimento, de debitar a vulgar conta de banalidades de ocasião, própria para espantar todos os ignaros e ignotos ignorantes aqui reunidos, acabei por abandonar a descompanhia de pele e osso e ir lá para fora, de copo na mão, apanhar ar fresco e praguejar livremente, livre do abuso do Olho Mecânico e do seu dono.
Agora estou a ver duas parvinhas em pose convencional, a abafarem gargalhadinhas incoerentes com uma mão, e com a outra a segurarem um copo com alguma bebida anódina. Lembro-me que, quase por acaso, ouvi aquelas duas aranhas invejosas a falarem de ti em termos muito pouco elogiosos. Mas não te preocupes, que eu tratei delas. Afinal, não são só as mulheres que encontram usos para o conteúdo de uma caixa de tampões.
Entretanto, continuemos com a minha desgraçada narrativa. À minha frente estava estacionado o popó do Senhor O, um Oh de meter dó, que devia era estar fechado no xelindró. Já o tinha visto várias vezes: vermelhinho, lustroso, a rosnar nas auto-estradas, a derrapar nas curvas. Aqui (apontar com o indicador), frente ao volante, assenta-se o débil mentOl com o seu espremido cérebro equilibrado entre as orelhas, as suas nádegas e o seu sorriso de boi triste. Daqui o humanóide, o automatóide, o homúnculo batatóide, conduz a sua maquineta de cem cavalinhos a relincharem de pura potência e com o seu metálico e dilatado rectum escapeorum largando traques de monóxido de carbono estrada afora, Senhor do Mundo, ufano, contente consigo mesmo e alegre por estar vivo, através do tráfego caótico e da barbárie oficializada, a caminho do seu titilante emprego nos subúrbios, o estupor! No assento traseiro também há espaço para as nádegas quadradas dele. De facto, há espaço para dois pares de nádegas, o dele e de quem o quiser apanhar. Já o oiço a dizer, na sua voz canaille, no seu hilariante defeito de fala — "Bem vinda ao meu ninho de amor," (De facto, esta contribuição é minha. Ele não tem imaginação para tanto) "Põe-te... deixa-me só tirar isto... O. K.!... põe-te confortávéu. Agora..." — E antes de o braço maior e mais nervoso do relógio que ele usa sequer completar uma volta, zuca-zuca, trás-trás, tudo estará efectiva e prematuramente acabado. Toda a porcaria estará feita. Depois de ter encontrado o buraco certo, de ter forçado a sua entrada, depois de ter arfado como um boi em cima de ti, já aliviado do seu constrangimento testicular, compõe a sua figura, e tu, desconfortável e atordoada (e horrorizada e enojada e morta por dentro), com as cuequinhas aos teus pés e uma dor na perna por causa do maldito joelho dele, tentas ainda, num esforço inútil e patético, perceber o que é que transformou o sempre desagradável momento da desfloração num verdadeiro pesadelo grotesco. É isto que queres? Dividir a cama a meias com esta alforreca peganhenta, de modos servis e sorriso odiosamente branco, com um emprego ridículo e um carro perigoso? Acabar a vida com uma prole de robustos e ingratos filhinhos, réplicas animadas de um mesmo boneco de palha para arder no fogo, com botões partidos como olhos e ganchos como mãos; seres molestada, escarafunchada, estragada por dentro e torcida por fora, de tiquetaquezinho quebrado e irremediavelmente perdida, sans dentes, sans olhos, sans sabor, sans nada? Deus, como eu o odeio!
A esta altura, devo informar que a tradução que fiz de um manual de mecânica automóvel, por sinal um dos meus melhores trabalhos, para uma empresa minúscula, mas de honrada qualidade, que viria a abrir falência pouco tempo depois, se revelou bastante proveitosa. Tentei abrir o capôt. Abri o capôt. O plano tinha-me surgido num clarão repentino em toda a sua pristina transparência, em toda a sua precisão matemática. Cortar o tubo de óleo dos travões. Sem óleo não há travões, sem travões há acidente, Acidente = Morte. A equação é fatal, perfeita. Já ando há tempo demais a odiar o meu emprego, o meu patrão, o meu apartamento, a minha irmã, a tua irmã, a Xiça da minha vida. Isto assim não podia continuar, não podia. E a solução para todos os meus problemas, e, com o tempo, o teu amor, estavam ali ao meu alcance, à distância de um pequenino tubo de borracha cortado. E não hesitei — Estou farto de ser um cobarde. Cortar? Muito simples. Atirei fora o conteúdo do copo, parti-o contra uma pedra e apanhei um dos cacos, um camarada jeitoso e afiadinho. Ocorre-me agora, enquanto vejo estas fotografias e faço este insensato esforço para relembrar toda aquela noite horrorosa, uma frase do Joyce, uma paródia a um conhecido monólogo de Shakespeare, The world is just a stage for stagers to stage in!
Ainda me lembrava vagamente dos complicados esquemas do motor, mas a iluminação era bastante deficiente e tive que andar às apalpadelas, à procura do raio do tubo... Ah, cá está ele! Zás! e o óleo, a seiva da Morte, começou a escorrer. Ping! Uma gota de óleo por cada beijo que o bandalho musculado cevou no teu pescoço. Ping! Esta é por — riscado a vermelho, com fúria. Ping! Esta é por — obscenidades intraduzíveis. Ping! Já estás morto, Idiota. Saí dali o mais depressa que pude, aos trambolhões e com a morte oleosa agarrada aos dedos. Se por acaso algo corresse mal, coisa aliás extremamente improvável dada a perfeição do plano, sempre poderia alegar insanidade temporária, o que seria confirmado por um qualquer representante da Pandilha de Viena, essa sociedade anónima com responsabilidade limitada, logo que este tivesse acesso ao meu historial, a certos sonhos recorrentes (Hélas! Engendrados apenas por mentes tortuosas) e ao conteúdo integral da minha "desarranjada cabecinha", cheia de ruído ensurdecedor e de Vozes estridentes — cabecinha que o Herr Doktor se encarregaria, em caras sessões semanais, de endireitar e colocar de novo nos previsíveis carris da vida normal em sociedade. A Voz mandou-me voltar à festa e eu obedeci.
(Fotografias vão... e vêm... vão e vêm... Uma, duas, três... muitas...)
Andei às voltas na semi-escuridão, eu e o meu fantasma, com o matagal a crepitar debaixo das solas dos meus sapatos, a pontapear pedrinhas que rolavam como crânios de osso humano, fragmentos de Yoricks polidos e reduzidos pelo tempo. O silêncio e o nada rodeavam-me completamente. Já à porta da casa fui ignobilmente atacado. O palhaço esvoaçante que andava no grupinho do O, lá acabou por usar a lorpa da sua máquina fotográfica Leika. Com ela a tira-colo, dedicava-se a tirar instantâneos a todos os presentes, surpreendendo-os numa pose inconveniente ou a meio de alguma conversa. Agora, emboscou-me com um salto à Orangotango e tlique-tlaque! A guilhotina do obturador desceu, o flash explodiu na minha cara e a minha cabeça rolou chão afora, e o que se vê agora na fotografia é um Eu lívido e meio-morto, a exibir a metade de um sorriso espantado, com os braços esticados e as mãos paralisadas frente à câmara, talvez para me proteger daquela invasão luminosa, talvez para o estrangular.
Pouco tempo depois fui-me embora — facto já não documentado pelas fotografias. O carro mastigou quilómetros e quilómetros de estrada na mais completa escuridão, à minha volta tudo vazio e morto. Entrei sozinho no prédio. As grades do elevador gemeram no seu movimento de acordeão. Subi até ao meu andar, ouvi os meus próprios passos no corredor, meti a chave à porta e fui mornamente acolhido por um apartamento vazio. Lavei as mãos da Morte gordurosa. Deitei-me na minha cama com um metro e vinte e sete de largura e acabei a noite a ver televisão; e só não fiz amor comigo mesmo porque não faço a mínima ideia o que seja tal coisa.
Passou uma semana inteira e nada. Trriiimmmm! O telefone! Do outro lado da linha uma voz conhecida, transtornada: Um acidente horrível na autoestrada... o O, sabes... cadáver irreconhecível... com massiças hemorragias internas no hospital... no mínimo, ficará reduzido a uma sucata de apoios ortopédicos, dentadura e peruca postiças. Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! O que eu me divirto com isto! Passaram duas semanas e ainda nada. Reconheço que será um choque difícil de suportar, que a recuperação talvez demore algum tempo, mas estarei sempre do teu lado, com a minha sombra esguia, com o generoso consolo do meu ombro ossudo e as minhas carícias desinteressadas. E o Tempo apaga tudo, vais ver. Três semanas. Hoje fui ao Oftalmologista. Já lá vão três semanas e ainda nada. Hoje fui ao Oftalmologista. Estou a repetir-me. Estou a ficar nervoso. Será que o rasgão que fiz no tubo não foi suficiente? Quatro semanas e ando muito ocupado com certas minudências literárias para tentar enganar a ansiedade. Cinco semanas... Doce Jesus, faz qualquer coisinha. Mês e meio — O melhor mesmo é acabar com isto depressa. Três meses depois, já no começo do inverno, o telefone retinirá, levantarei o auscultador e ouvirei a voz desagradável do O, e com o decorrer da conversa, de resto completamente inútil, ele dir-me-á, a propósito de nada, que "inexpeuicavéumente," (sic.) "o tubo que uiga o esguicho d'água ao depózito 'tava rôto." Que ele teve que pagar uma quantidade obscena de dinheiro pelo arranjo. Que — não ouvi mais nada. Não quis ouvir mais nada.

Quatro meses depois, estou eu agora sentado com o Orangotango, a rever o registo visual que ele fez daquela "festa esplêndida."

G. Rodrigues, Assassino desajeitado.


Comments: Enviar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?