terça-feira, maio 10, 2005

 

Salvações II


Há uns anos atrás passei uma temporada no hospital. A maior parte do tempo estive deitado num pesado coma induzido por sedativos de grande potência. Mas a dada altura (não me lembro se de dia ou de noite, pois tinha perdido toda a noção do tempo) encontrei-me acordado e fora da cama, sentado no chão frio de um corredor com as costas contra a parede. Exceptuando uma maca abandonada mais adiante da qual tombava um braço, o corredor estava vazio. Cheirava a morte mal lavada e a luz que saía do tecto era verde e doente. Percebi que estava nu por debaixo da bata. Olhei para o meu corpo e não o reconheci. Parecia-me o corpo de um estranho a que tivessem atarrachado a minha cabeça. Olhei para o braço direito. Com a mão esquerda arranquei os pensos e adesivos e por baixo vi um rendilhado de cortes, feridas e sangue coagulado. Senti na mão direita o contacto frio de um arame (que não sabia como tinha vindo parar às minhas mãos). Só precisava de arranjar um local sossegado para picar e rasgar as feridas e vazar o que restava de vida vermelha. Foi então que comecei a soluçar descontroladamente. Escondi o rosto nas mãos em concha tentando fazer regressar as grossas lágrimas para dentro dos olhos. Tentei abafar os soluços. Quando voltei a levantar os olhos, mesmo à minha frente uma miúda pequena olhava-me fixamente. Estava vestida de pijama azul claro e carregava nos braços um ursinho castanho a deitar uma pequena língua vermelha de fora e já sem um dos botões como olhos. O rosto dela estava completamente desfigurado por queimaduras graves e parecia-se com os relevos fantásticos das decalcomanias selvagens que eu costumava fazer na minha já distante infância. Por baixo das pregas de carne brilhavam dois olhinhos amendoados. Não me lembro se o cabelo era ruivo ou castanho claro — as duas cores confundem-se nos destroços da memória. Abraçou-se a mim em silêncio e embalou-me, a mim e ao ursinho, no que me parece terem sido as horas mais longas da minha vida. Continuei a chorar. Depois, da mesma maneira que apareceu, desapareceu: silenciosamente e sem deixar rasto. Vi-a a afastar-se de costas, arrastando o ursinho pelo corredor do hospital.

Há quanto tempo é que aquilo se passou? Oito, nove anos? Tento imaginar o que é feito daquela miúda. Será que sobreviveu às queimaduras? Terão os médicos conseguido devolver-lhe um rosto humano? Terá ela crescido e entrado nas peças da escolinha como todas as outras crianças (a fazer ora de malmequer ora de algum personagem histórico ilustre); terá saído à noite para ir dançar junto com as amigas nalguma discoteca ou fumado cigarros às escondidas na casa de banho? Se estiver viva, deverá ter praí uns dezasseis, dezassete anos. Terá experimentado maquilhagem no rosto? Batôn nos lábios, rímmel nas pestanas? Terá arranjado algum namorado competente e robusto, um futuro mecânico ou electricista, que a desflorará no banco traseiro de algum carro parado à sombra de uma árvore morta num dia morto de um verão morto? Ou talvez tenha sido apenas mais um desperdício de vida sem sentido, cuja única impressão que deixa na textura do Tempo Humano é um solitário grito espezinhado até à morte pelo tropel insano da dor e do sofrimento. Talvez tudo não tenha passado de um sonho e aquela miúda não tenha sido mais do que um fantasma invocado por uma imaginação exausta alimentada a drogas várias. Talvez, talvez. Mas ainda guardo comigo aquele pedaço de arame afiado que não cheguei a usar e seja lá o que for que lhe tenha acontecido, gostaria que ela soubesse que salvou a minha vida. Muito obrigado, quem quer que sejas.



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