quarta-feira, novembro 30, 2005

 

Evangelho perdido


Há um homem que vagueia acima dos telhados mesmo abaixo das nuvens do céu. Debaixo do impermeável está nu, no bolso esquerdo carrega um pequeno rádio de ondas curtas para ouvir as notícias da Outra Cidade e no bolso direito uma pequena agenda e um lápis roído na ponta. De pé, em cima de um banquinho de madeira, com a lata de sardinhas pronta a receber a esmola do dia, prega ao vazio e à Cidade, num país macilento que é uma nódoa de mosca verde num mapa de um Mundo Redondo a rebentar pelas costuras com o peso de mais de seis mil milhões de almas. Passou trinta anos sozinho a olhar de uma janela num trigésimo andar para as pessoas tão minúsculas cá em baixo, para agora proclamar indignadamente a nossa falência miserável, que todos nós estamos fragmentados e que ele é a fita adesiva para nos reajuntar de novo. Apanhou doze pombos feridos e esfolados e criou-os com insistente paciência. Deixou crescer a barba onde eles puderam fazer ninho e deixou de tomar banho porque já estava limpo. Para o fim dos seus dias decidiu alimentá-los com o sangue picado da ponta dos seus dedos. Para si mesmo apanha o que a Providência deixa nos cantos das ruas e nos caixotes do lixo. Quando completou os trinta e três anos, sentenciou que a Lei estava cumprida, arrancou as folhinhas da sua agenda e espalhou-as ao vento como se fossem fragmentos de vidas perdidas. Libertou os doze pombos e depois regou-se a si mesmo com gasolina e atirou-se de cima do telhado, a arder como uma tocha humana a fuzilar a escuridão da noite.



sábado, novembro 26, 2005

 

Aventuras na terra do meu corpo IX


Escarafunchar no nariz é um hábito feio e pouco higiénico. Mas eu sei que se persistir, conseguirei arrancar das profundezas um encalhado tumor do tamanho de um caroço de nêspera.



terça-feira, novembro 22, 2005

 

Brincadeiras


As minhas brincadeiras são para levar muito a sério.



terça-feira, novembro 15, 2005

 

Azul


A minha cor favorita.

Banda Sonora: A. R. Kane — Crazy Blue.



sexta-feira, novembro 11, 2005

 

Do Adeus


Adeus deve ser a melhor coisa que podemos dizer a alguém, uma vez que estamos, literalmente, a encomendá-la A Deus. E se dói tanto é apenas porque aqueles que partem levam com eles o melhor de nós mesmos.

Adeus, amiguinhos.



quinta-feira, novembro 10, 2005

 

Distâncias II


Como é que se mede a distância entre nós e uma outra pessoa? Grita-se um "Adeus" em direcção à pessoa, fica-se à espera do eco e depois medimos a sua amplitude e comprimento de onda. Se a pessoa se estiver a afastar a uma velocidade superior à do som, como efectivamente está, nunca chegará a ouvir o "Adeus" e nenhum eco chegará a nós. Neste caso consideraremos a distância como sendo efectivamente infinita.



quarta-feira, novembro 09, 2005

 

Perdão


Pelo que fiz.
Pelo que não fiz.
Pelo que deveria ter feito.
Pelo que deixei de fazer.

Banda Sonora: A. Schnittke — Psalms of Repentance (Swedish Radio Choir conduzido por Tonu Kaljuste).



terça-feira, novembro 08, 2005

 

Desumanos


O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber e reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe espaço.
— I. Calvino, Le città invisibili (trad. de José Colaço Barreiros).

Assim o jovem Marco Polo instrui o idoso Kublai Khan. A teologia negativa é mais modesta: saber reconhecer no meio do inferno dos mortos o que é inferno e não lhe dar espaço, abafá-lo como se de uma vela acesa se tratasse.



quinta-feira, novembro 03, 2005

 

Confissões


Why, what an ass am I! This is most brave,
That I, the son of a dear father murder'd,
Prompted to my revenge by heaven and hell,
Must, like a whore, unpack my heart with words,
And fall-a-cursing like a very drab,
A scullion! Fie upon't! Foh!

— W. Shakespeare, Hamlet.


A confissão não deixa de ser embaraçosa, mas o facto é que eu não tenho nenhuma Palavra para dizer, e muito menos a vontade de dizê-lA. Das raras vezes que tal vontade surge, apresso-me a escrevê-lA e, finalmente, ponho-A aqui no blog. Passado pouco tempo já está tudo esquecido.

Esta é para mim a maior justificação de manter aberto este blog: exercer essa iníqua violência que é o Esquecimento e afogar a Palavra à nascença.

Como Harold Bloom constantemente nos relembra, citando Nietzche do Crepúsculo dos Deuses na peugada de Hamlet, aquilo para o qual encontramos palavras já está morto nos nossos corações, e daí o desprezo pelo acto de falar. A única coisa que vale a pena dizer é aquilo que não pode ser dito.



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