segunda-feira, fevereiro 28, 2005

 

Aforismos


Não desejes muito nem com muita força. Pessoas houve, mais fortes que tu, e que sucumbiram.



domingo, fevereiro 27, 2005

 

Arvo Pärt


Andei o fim de semana inteiro a (re)ouvir o álbum Te Deum (constituído pelas peças Te Deum, Silouans Song, Magnificat e Berliner Messe) de Arvo Pärt, tocada pela Tallinn Chamber Orchestra e pelo Estonian Philharmonic Chamber Choir sob a direcção de Tönu Kaljuste.

A maior parte do tempo, ouvi o Te Deum imerso em escuridão. Completamente desfeito em fragmentos. Não sabia que ainda tinha lágrimas para derramar. Lembro-me que falei mas não me lembro com quem. Mal comi o fim de semana inteiro. Não, nem despedaçado estou sequer. Estou apenas. Esvaziado.



sexta-feira, fevereiro 25, 2005

 

Salvações


É a Poesia que nos salvará. A Poesia de Deus.

Banda Sonora: Arvo Part - Te Deum.

A Ler: Ev. de João, 1.



 

De coração pesado eu murmuro


Ash Wednesday, VI

Although I do not hope to turn again
Although I do not hope
Although I do not hope to turn

Wavering between the profit and the loss
In this brief transit where the dreams cross
The dreamcrossed twilight between birth and dying
(Bless me father) though I do not wish to wish these things
From the wide window towards the granite shore
The white sails still fly seaward, seaward flying
Unbroken wings

And the lost heart stiffens and rejoices
In the lost lilac and the lost sea voices
And the weak spirit quickens to rebel
For the bent golden-rod and the lost sea smell
Quickens to recover
The cry of quail and the whirling plover
And the blind eye creates
The empty forms between the ivory gates
And smell renews the salt savour of the sandy earth

This is the time of tension between dying and birth
The place of solitude where three dreams cross
Between blue rocks
But when the voices shaken from the yew-tree drift away
Let the other yew be shaken and reply.

Blessèd sister, holy mother, spirit of the fountain, spirit of the
        garden,
Suffer us not to mock ourselves with falsehood
Teach us to care and not to care
Teach us to sit still
Even among these rocks,
Our peace in His will
And even among these rocks
Sister, mother
And spirit of the river, spirit of the sea,
Suffer me not to be separated

And let my cry come unto Thee.

— T. S. Eliot.


quinta-feira, fevereiro 24, 2005

 

You shall walk the tread of the dead


This is the tread. The tread you shall tread. In this tread you shall be trod upon. In this the tread you shall be trod by the tread of. The tread. You shall tread the tread trod upon by the down trod. Upon the tread you shall tread the tread of hard stone. Oh the tread of stone trod by no living bone. You shall tread the tread of dread hard like stone. Your bone crossed upon the stone of the tread you shall tread. You shall walk alone this tread of stone and without bread. Tread alone the lone tread of stone. With no bread. Your bone against the stone. The head alone against the dread of the stone in this tread. This is the tread the dead have tread. You must follow the thread. Follow the thread spread thin over the tread you tread. The thread of blood the dead have bled in their tread. You shall be trod upon by the dead. Your blood smeared by the tread of the dead. The tread of dread tread by the dead. The dead trod upon. The dead trod upon unshod. You shall follow the tread this the tread the tread of dread this is the tread the tread I trod. The tread I trod first. The tread I trod before unshod. The tread I trod with the smeared blood I bled. The tread of the dead.

Banda Sonora: Steve Reich - Pulses.

A Ler: Wallace Stevens - Cortège for Rosenbloom.



 

Sobre Lucas 12:49, II


O Evangelho de Tomé é um dos vários documentos da biblioteca cóptica de Nag Hammadi desenterrada na década de 1940. Fragmentos deste texto no grego original sobrevivem nos papiros de Oxirrinco (onde mais tarde muitos Padres do Deserto haveriam de fazer a sua casa), o que permite concluir que a versão grega era usada no Egipto desde o segundo século.

A autoria é atribuída ao apóstolo Judas Tomé, O Gêmeo. No início podemos ler:

These are the secret sayings which the living Jesus spoke and which Dydimos Judas Thomas wrote down.

Tanto Dydimos (Grego) quanto Thomas (Aramaico) significam Gêmeo. Na tradição da Igreja Siríaca, Tomé é tido como irmão de Jesus e o fundador das igrejas do Oriente, especialmente a de Odessa. Embora não seja possível atribuir o texto a nenhuma escola ou seita gnóstica em particular, é especialmente apropriado que a autoria de um texto com claras influências gnósticas seja d'Aquele que Duvidou.

Muitos dos ditos (são 114 no total) têm claros paralelos nos quatro evangelhos. Por exemplo, o dito 10 dá-nos a seguinte versão de Lucas 12:49 (tal como na citação acima, na tradução para Inglês de Thomas lambdin):

Jesus said "I have cast a fire upon the world, and see, I am guarding it until it blazes."


segunda-feira, fevereiro 21, 2005

 

Sobre Lucas 12:49


Eu vim dar início a um fogo na terra, e que mais hei de desejar, se já foi aceso?
– Ev. de Lucas 12:49.

O Mundo está a arder. Estamos a arder; tochas humanas iluminando a noite escura. E depois de consumida a madeira dos nossos ossos, o que restará para a silenciosa oferenda da nossa morte?

Banda Sonora: The Lounge Lizards – My clown's on fire.



sexta-feira, fevereiro 18, 2005

 

Flores no céu


Já há muito tempo, J. L. Borges esclareceu definitivamente que as flores são, não os ocasionais enfeites de amor ou acessórios para os vivos mas o tributo que prestamos aos nossos mortos. O poema Mortes em Buenos Aires termina da seguinte maneira (tradução de Fernando Pinto do Amaral):


Disse o enigma e direi também a sua palavra:
sempre as flores haverão de vigiar a morte,
porque sempre nós, homens, inexplicavelmente soubemos
que a sua vida dormente e graciosa
é a que melhor pode acompanhar os mortos
sem nunca os ofender com a soberba da vida,
sem ser mais vida do que eles.

A fotografia acima é da nebulosa Rosette (ou NGC 2237) à distância de cerca 5000 anos-luz. Pergunto-me quem é que terá morrido para Deus celebrar a sua morte atirando contra o céu escuro uma tal Rosa solitária.


quarta-feira, fevereiro 16, 2005

 

O Amor é como


O Amor é como estar sozinho no meio de um parque infantil vazio. O Amor é assim: é como um céu de cimento sobre um parque infantil vazio. O Amor? O Amor é como chuva gelada a cair num parque infantil vazio. É como chuva gelada a cair nas palmas das mãos entorpecidas pelo frio. Como mãos geladas. Vazias.

Movi os pés mecânicos em direcção ao Norte. O vento assobiou a sua canção inhumana.

Banda Sonora: Isotope 217 – La Jeteé.


 

A disciplina do Amor


Talvez uma das ironias terminais da severa disciplina do Amor seja o devolver-nos a uma solidão mais forte.

Banda Sonora: Leonard Cohen – I’m your man.


terça-feira, fevereiro 15, 2005

 

Tácticas de Guerra


Tsao Chuan relata que numa batalha entre os exércitos de Wu e C’hu em 518 a.c., o Visconde de Wu ordenou que três mil condenados se pusessem à frente do seu exército e se suicidassem cortando os pescoços. O exército de C’hu fugiu aterrorizado.

Uma excelente táctica para utilizar na guerra do Amor.

Banda Sonora: Savage Republic – Siege.


 

Personal mission statement


No outro dia, um amigo meu falava-me da sua “Personal mission statement” (PMS), uma espécie de declaração de princípios pessoal para o ajudar a manter o equilíbrio. Acho uma excelente ideia. Assim, sábado, 19 de Dezembro de 2004, mais ou menos entre as 18 e as 20 horas elaborei a minha própria PMS (que também serve de acrónimo em Inglês para outra coisa completamente diferente – ou talvez nem tanto) em trinta e três passos e que aqui deixo para vosso grande benefício:

  1. Usarei o meu coração como uma coroa de espinhos.
  2. Usarei o meu cabelo atado atrás como a minha prima Vera da Rússia.
  3. Pintarei o meu corpo de ruivo.
  4. Não tomarei mais banho.
  5. Dormirei num caixote de lixo.
  6. Venderei as minhas pestanas para se fazerem bonitas cabeleiras.
  7. Contarei até trinta e três antes de gritar.
  8. Erigirei um abismo com o pensamento.
  9. Da minha mão crescerão dedos.
  10. A minha vida, graças a Deus, será um’A Grande Derrota.
  11. Enterrarei uma flor no centro de uma extensão de relva verde.
  12. Um sonho meu fará um corte profundo na realidade.
  13. Cruzarei uma ponte que nunca foi construída sobre um rio que nunca correu.
  14. Serei comido por um exército de borboletas.
  15. No meio da tempestade protegerei uma vela com as mãos em concha.
  16. Como um iceberg flutuarei para longe do pólo norte.
  17. A minha voz soará no deserto como trovão; um abutre levantará vôo.
  18. Não moverei montanhas.
  19. Terei visões de mim mesmo.
  20. Engolirei uma baleia e ao fim de três dias vomitá-la-ei.
  21. As minhas mentiras revelarão o meu verdadeiro Eu.
  22. O meu silêncio será a minha oração.
  23. Direi Não ao Não e Sim ao Sim.
  24. Cultivarei amigos entre os cães; Cultivarei cães entre os amigos.
  25. Serei um pardal e cairei ao chão.
  26. Serei uma pedra lançada à tua cabeça.
  27. Cuspirei ao vento quando ouvir a palavra “Advogado”.
  28. Escreverei longos poemas de amor endereçados a desconhecidos que nunca me entenderão.
  29. Construirei fortalezas à minha volta mas ninguém me invadirá.
  30. Pregos cairão das minhas mãos e dos meus pés; o meu corpo cairá desmembrado ao chão.
  31. Resistirei ao Espírito Santo e o Espírito Santo, que sopra onde quer, apagar-me-á como o vento apaga uma vela.
  32. Pelo Amor vim ao Mundo, pelo Amor sairei Dele.
  33. A última bolha expelida pelos meus lábios soletrará Gólgota, o lugar da Caveira.


Banda Sonora: Tom Waits – I’ll be gone.


segunda-feira, fevereiro 14, 2005

 

Distâncias


Como é que se mede a distância entre duas pessoas? Envia-se um Raio de Luz e mede-se a diferença de fase do reflexo.

Banda Sonora: Tortoise – A simple way to go faster than light that does not work.


domingo, fevereiro 13, 2005

 

Estranhezas

Estranho mesmo, ao tropeçar no nosso próprio passado na dobra de uma frase, ao cair de um ponto final, é perceber que as nossas obsessões não mudaram em nada.



 

Conselho para jovens escritores


Read over your compositions, and when you meet a passage which you think is particularly fine, strike it out. – Dr. Samuel Johnson.

Relendo a história resta apenas uma mão cheia de passagens para riscar e metade delas nem é minha. O que merece outra deliciosa Jonhsoniana:


Your manuscript is both good and original; but the parts that are good are not original, and the parts that are original are not good.


sábado, fevereiro 12, 2005

 

Uma Estorinha


O que se segue é uma das primeiras histórias que eu escrevi. Ingenuamente, mandei-a para o DN Jovem (ainda vive?) e ainda por cima, idiota consumado que sou, fiz publicidade entre amigos e familiares. Os comentários que recebi foram gentis e generosos, e também bastante cretinos. Serviu-me de lição: ninguém meu conhecido chegou a ler as histórias que subsequentemente enviei. Como o mal está feito, aqui fica para a posteridade uma certa visão de quando eu ainda me importava e tinha fôlego para coisas destas. Tirando um devaneio há alguns meses atrás (e que ficou incompleto e que eu nem tenho coragem de acabar), deixei simplesmente de escrever estórias em Português, uma língua que eu já não reconheço, que se tornou definitivamente impossível, que não me merece e que eu já não mereço. Ao relê-la, consciente da dívida para com Tom Waits e Thomas Pynchon em particular, a sensação geral é de indiferença; quem escreveu isto foi outro eu.

Nota: A história aqui publicada é a versão final do original que apareceu no DN Jovem.


Is there anyway out of this dream?


Há muitas e muitas luas, quando a terra era mais plana e o céu pairava suspenso a pouca distância das nossas cabeças, estava eu numa banda com mais alguns tipos. A minha alma era então três libras mais leve, os meus olhos não tinham escamas e ainda havia fogo e fôlego nos pulmões. Eles não. Eles já estavam velhos e atrasados, já tinham sido triturados e cuspidos, vendidos aos pedaços e atropelados. Mas eram no geral bons tipos e nenhum deles sequer tinha cadastro na polícia.
Tocávamos sempre de noite em espeluncas decadentes e manhosas, onde o público se dividia pelos habituais marinheiros de licença à procura de um precário equilíbrio em terra firme, pelos corpos moles e usados de prostitutas e pelos bêbados de cabeça tombada na mesa, olhos vazios, garrafa partida e lábio ensanguentado. O dinheiro que fazíamos era gasto a apanhar valentes bebedeiras que nos transformavam em sonhos intermitentes, absorvendo as cores da noite epiléptica e do néon fluorescente. Acordávamos ainda de madrugada, deitados na relva húmida e agarrados uns aos outros atrás de um banco no meio de algum jardim público, enquanto a luz avançava lentamente como um rolo compressor apagando a paisagem no seu caminho. E naqueles breves instantes, quando tínhamos como derradeiro agasalho um jornal velho de uma semana, o nosso próprio cheiro e uma mesma memória destroçada e arruinada, descobríamos que a janela do olho era uma ilusão e a nossa mente recuava em direcção ao vazio, incapaz de fornecer coerência a um mundo exterior totalmente estranho e não disposto a render o seu mistério. Depois éramos espantados de volta para a escuridão de um quarto de hotel rachado em dois como se fôssemos morcegos com medo de nos dissolvermos em cinzas.
A banda chamava-se DJ Moonshiner and the Mysterious Angel Messengers e tocávamos uma espécie mutante de Punk Jazz, voodoo sónico, banda sonora para avalanches de prédios a implodir, música ambiente para bordéis esquizofrénicos, para cadeira eléctrica, sei lá. Destilávamos música furiosamente e até tínhamos inúmeros projectos e ambições, mas estes acabavam invariavelmente desbotados e corroídos pela vida de loucos que levávamos.
Mais mortos que vivos, passávamos o dia a dormir sobre os escombros da melancolia e do desespero, tentando apaziguar os fantasmas que insistiam em nos visitar em sonhos demasiado reais para serem verdadeiros. Ou então entretíamo-nos em actividades espúrias e inúteis. Jogávamos às cartas sem baralho, em cima de uma mesa que não existia e apostando o dinheiro que não tínhamos. Ou escondíamo-nos dentro dos tambores das máquinas de lavar, e ali às voltas naquele útero de água e detergente, já sem sentido ou orientação, lutávamos contra as forças centrífugas da dispersão. Ou de pé debaixo do chuveiro a sermos baptizados, a observar o sexo mudo e murcho a pingar água tépida e a nossa vida lavada a desaparecer pelo ralo da banheira. Sem memória de qualquer contacto humano e destituídos da Palavra, éramos como forasteiros ilegais numa cidade de autismos, onde tudo estava partido e todos falavam a mesma algaraviada incompreensível. Até podíamos descer à rua em noites sem nada de alguma coisa dentro, com as máquinas fotográficas a tira-colo, mas a Morte abria o seu olho de sono e tirava-nos o retrato. Para mais tarde relembrar. E enquanto o resto da noite fugia envergonhada, o clarão fotográfico mostrava a quem quisesse ver as nossas silhuetas carcomidas.
Queríamos ser cães, árvores, vento. Queríamos fazer exactamente aquilo que fazíamos melhor: nada, e onde a música turbulenta e caótica que praticávamos fosse como o ruído de fundo de uma rádio dessintonizada a pairar num quarto vazio.

DJ Moonshiner and the Mysterious Angel Messengers.


TKO é o homem do piano. Sentava-se num pequeno banco, curvado sobre as teclas por onde fazia correr as minúsculas mãos. Um dia, farto de tocar para um público sacana, subiu para cima do piano, abriu a braguilha e começou a urinar para cima deles. Teve azar. Uns quantos marinheiros com uma réstia de lucidez intocada pelo álcool, sacaram das suas navalhas enferrujadas e perseguiram-no furiosamente sob os incitamentos obscenos das prostitutas e os hurras triunfantes dos bêbados. Apanharam-no num beco sem saída iluminado de viés por candeeiros biliosos e espancaram-no. Depois regaram-lhe o corpo com o álcool que levavam consigo e deitaram-lhe fogo. Numa das paredes do beco estava escrito reality used to be a friend of mine. Nada de muito mal lhe aconteceu, pelo menos nada que umas semanas no hospital e enfermeiras bonitas de cabelo ruivo não curassem.
Foram NU e TKO que tiveram a ideia de formar a banda. NU costumava servir como guarda-costas para um mafioso de segunda categoria e com cara de boi triste. Resolveu meter-se com a filha deste, uma desengraçada meio histérica com umas faces sumidas e o corpo como uma tábua de engomar. Num dia normal sem nada de extraordinário, apareceu-lhe o mafioso à porta com dois gorilas armados, a filha em casa de olhos negros e a sangrar do nariz, estava ele enterrado no sofá, com a barriga cheia de cerveja e a televisão ligada a disparatar estereofonicamente. “Meu ganda cornudo, vais apanhar o combóio para o outro lado do mundo antes que eu expluda com o par de tomates mirrados que tens no meio das pernas.” Ainda hoje quando se assusta agarra-se às partes como que a lembrar-se da sorte que teve naquele dia em escapar ileso.
KOCK toca saxofone e está apaixonado pela Lua. Antes de entrar na banda morava no sótão de um prédio velho a cair de roto e todas as noites de Lua cheia ficava postado à janela a admirá-la. Um dia de tão bêbado que estava, e depois de ter cantado vários poemas que variavam entre o amor absoluto e a mais profunda obscenidade, caiu cá para baixo, arrebentando-se todo. Passou três meses no hospital, durante os quais o interior do seu corpo – coração, pulmões, rins, etc. – sofreu uma reorganização total. Voltou ao ar livre e raquítico num dia chuvoso, a cabeça a fervilhar de ideias tão disparatadas quanto nocivas. Transformou o buraco onde vivia numa desordenada oficina, onde se dedicou a desenhar e a executar complicados projectos de escadas, de cordas, rolantes, hidráulicas, o que fosse preciso para chegar até à Lua. Parece que ainda conseguiu atingir os níveis mais baixos das nimbo-nuvens mas depois acabou por desistir porque lá em cima o ar era muito rarefeito e nem as máscaras de mergulhador ajudavam o que quer que fosse. Encontrei-o num bar, perdido de bêbado e a tocar um saxofone que empunhava como uma arma ameaçadora e que lhe dava o aspecto de um insecto de tromba dourada com os olhos gigantes injectados de sangue. Arrancou um solo do saxofone de fazer arrepiar os cabelos e depois chorou um choro surdo com a violência de um grito mudo. Entrou para a banda na promessa de lhe arranjarmos toda a pornografia lunar que pudéssemos e que ele pregava de uma maneira desordenada na parede e admirava com aquela morna lascívia própria dos viciosos.
Encontramos CHOQUE um pouco por acaso. Era um anão muito estranho, de andar trôpego e que andava sempre impecavelmente vestido. Parava todas as noites nas estacões de metropolitano debaixo do chão, onde tocava trompete a troco da generosidade de quem passasse. Certa vez vagueávamos nós pelos subterrâneos do metro, escondidos do mundo e da noite doentia sem lua, a espiar raparigas bonitas e a beber, e lá estava ele a tocar. Deitámo-nos no chão, em círculo à volta dele, e ficamos a ouvir a estranhíssima melodia que ele soprava no trompete. Trocámos álcool e objectos inúteis como pentes partidos e armações de óculos e depois perguntamos-lhe se ele queria juntar-se a nós e ao bando. Ele tocou que sim. Nunca disse uma palavra e nunca chegamos a saber se ele alguma vez disse alguma. Por enquanto fala unicamente pelo trompete, e da teia de sons por ele urdida já conseguimos captar o sim e o não, os palavrões que toda a gente conhece e os gemidos daquela infinita melancolia de quem tem um passado obscuro e impossível de reparar.
O último a entrar na banda foi POR. Estava na fila da frente num concerto que demos junto com os I have Santa Claus in my refrigerator, os Lunar freeks and the maneaters e os I scream Ice cream. Esteve sempre de olhos muito abertos e espantados, e no final dirigiu-se a nós, mais precisamente a CHOQUE, porque julgava que ele era um anjo e insistiu muito em ver-lhe as costas nuas para verificar se tinha asas. Vendo que estava enganado sentou-se desapontado e contou-nos a história da sua vida enquanto emborcava a última garrafa. Pediu mais Vodka. Muito Vodka. Se CHOQUE não era um anjo ao menos o Vodka era bem real. Procurava estabelecer contacto com eles através de um rádio de ondas curtas e através do qual já ouviu vozes e murmúrios celestiais vindos directamente do éter, aprendeu coisas inenarráveis e visitou mundos estranhos sem nunca sair do mesmo sítio.
Vê anjos POR todo o lado. In heaven everything is fine. Anjos enforcados nos postes de iluminação com os nomes das mulheres que amaram escritos a letras garrafais com o seu próprio sangue POR todo o corpo. Anjos completamente bêbados de amor, que de tão bêbados que estavam deitavam fogo a si próprios e atravessavam a noite escura ardendo como um cometa, deixando atrás de si um rasto de cinza celestial. Anjos disfarçados de condutores de autocarro; disfarçados pelo rabo de cavalo, pelos óculos escuros e POR um blusão preto Heavy Metal. Anjos na forma de uma criança de cabeça esmurrada de sangue a gritar o céu como quando uma mulher dá à luz; de uma mãe, que depois de amamentar debruça-se à janela a olhar o céu e as estrelas com um triste brilho húmido nos olhos; de um mendigo barbudo e cicatrizado no meio dos caixotes de lixo que procura estrelas cadentes e as encontra na forma de lâmpadas fundidas.
Em boa verdade era apenas mais um falhado, um perdido da vida como todos nós, tentando ler-lhe os sinais, rastejando para lado nenhum, apalpando o seu caminho em demanda de um outro lugar, só nosso, sempre insistindo em apreender os contornos indefinidos da realidade pela lente distorcida do fundo da garrafa. Além disso tocava bem bateria. A partir desse momento passamos todos a andar à procura de anjos e acho que foi assim que eles entraram na minha vida e de lá nunca mais saíram.

When angels speak of love.


Uma vez demos um concerto num bar só para cegos. Sentavam-se aos grupos de dois e três nas mesas redondas, impecavelmente vestidos e de óculos escuros, fumando charutos cubanos e bebendo bebidas exóticas e perfumadas, com as bengalas brancas apoiadas na perna direita. CHOQUE chegou atrasado, já meio tocado pela bebida, nó da gravata descentrado, camisa desfeita, fato e chapéu amarrotados e emitindo um som em surdina com o trompete como uma desculpa envergonhada. O concerto foi estranho, os tipos do público eram estranhos e não paravam de aplaudir batendo com as bengalas nas mesas e marcando o descompasso. TKO ainda mandou-os fornicar com as mãezinhas deles mas a única resposta que obteve foi um morno vai tu e mais bengaladas na mesa. Raio das bengalas. “São anjos,” disse POR, “grupos exploratórios em recolha de informações. Abandonaram as asas para não serem reconhecidos. Os olhos são lágrimas de Deus e os cabelos foram tecidos quando ainda não havia Tempo. Desmontaram os seus sonhos peça POR peça e hoje voltam para o céu em barcos a remos.” Acabamos o concerto e eles saíram ordeiramente, falando uns com os outros por murmúrios e fazendo gestos obviamente secretos com as mãos.
NU foi receber o dinheiro do dono do bar às traseiras, um chinês de calças brancas, cabelo oleoso e um problema bastante irritante na fala, mas acabou por chatear-se com o tipo porque ele não queria pagar o combinado. Num instante já estava em cima dele a esmurrar-lhe a cara com aqueles punhos ossudos e foi com muito esforço que o arrancámos de cima do filho-da-mãe do china. Antes de o deixarmos estatelado no chão, ainda lhe fanamos o dinheiro do casaco e o TKO ainda teve tempo para lhe pontapear mais uma vez a cabeça – “Esta é pelo piano desafinado!” Saímos para a noite húmida e histérica e a lua enchia o céu – “Xiça! Qu’ela hoje ’tá bonita como tudo,” disse o KOCK, agarrando-se às partes. Descemos às profundezas da cidade cão e mergulhamos na sua escuridão espessa para desbaratarmos o dinheiro em todo o tipo de líquidos corruptos, desde cerveja até detergente, passando por graxa contrabandeada e aftershave para a barba (POR ainda fanou uma garrafinha de tintura de iodo mas bebeu-a sozinho, o egoísta), para bebermos até rebentar e de uma vez por todas darmos o salto para o Outro Lado, para que o álcool roto fosse o comburente para um sonho mais amplo, contendo todas as ilusões e promessas e contaminasse a realidade, moldando-lhe a forma e sentido, apagando e desmentindo de uma vez por todas o mundo estúpido e brutal por onde nos arrastávamos.
A meio da noite andamos à tareia quando CHOQUEamos com um grupo de bêbados e prostitutas. Já nem me lembro porque é que começamos à pancada. Já não me lembro de muita coisa, mas o facto é que num instante, talvez em resposta a algum sinal (uma piscadela de olhos? O sacar de uma navalha?), já estávamos todos uns em cima dos outros, engalfinhados aos murros, cotoveladas, pontapés e dentadas, usando de cacos de vidro, latas de cerveja, de caixotes do lixo e de tudo o que viesse parar à mão para sem dó nem piedade acabar com os tipos. Ganhamos a guerra. A rua ficou juncada de corpos partidos e espirrados de sangue. KOCK encontrou uma prostituta desmaiada contra um caixote do lixo, de pernas abertas, mamilo à mostra e canto da boca a sangrar. Tinha os olhos como se fossem Luas cheias. Beauty lies in the eyes. Já estava a desenvencilhar-se das calças, pronto a saltar para o meio das pernas dela quando se ouviram as sirenes da polícia. Desatamos todos a correr dali para fora aos tropeções. Acabamos a noite a fazer coisas impossíveis das quais eu guardo apenas uma recordação vaga e confusa. Flutuamos como fantasmas pela noite vaporosa, perseguidos por candeeiros pálidos e pelas nossas sombras desproporcionadamente grandes. Trocamos murros com os nossos reflexos e dançamos em cima de carros abandonados, vomitamos o estômago e a vida e arrastamo-nos para dentro do metropolitano, debaixo do chão e escondidos do mundo, para ali ficarmos a dormir, uns em cima dos outros como náufragos que éramos, em cima de uma jangada à deriva.

Banda Sonora: Tom Waits – Is there anyway out of this dream? Sun Ra – When angels speak of love. P. M. Dawn – Reality used to be a friend of mine. David Lynch – In heaven everything is fine. Sonic Youth – Beauty lies in the eyes.


sexta-feira, fevereiro 11, 2005

 

John Ashbery


How much longer will I be able to inhabit the divine sepulchre
Of life, my great love? Do dolphins plunge bottomward
To find the light? Or is it rock
That is searched? Unrelentingly? Huh. And if some day

Men with orange shovels come to break open the rock
Which encases me, what about the light that comes in then?
What about the smell of the light?
What about the moss?

In pilgrim times he wounded me
Since then I only lie
My bed of light is a furnace choking me
With hell (and sometimes I hear salt water dripping).

Isto é John Ashbery (1927 - ) em How much longer will I be able to inhabit the divine sepulchre, do seu segundo livro de poemas, The Tennis Court Oath. O poema continua por mais 80 versos e eu serei um homem satisfeito se algum dia escrever um verso que seja digno do acima. Ou dos últimos oito versos citados abaixo.


Who are you, anyway?
And it is the color of sand,
The darkness, as it sifts through your hand
Because what does anything mean,

The ivy and the sand? That boat
Pulled up on the shore? Am I wonder,
Strategically, and in the light
Of the long sepulchre that hid death and hides me?


quarta-feira, fevereiro 09, 2005

 

Ensaio de Despedidas III


Foi há <inserir número de dias> que comecei a escrever este blog (e, apetece-me acrescentar, “no ar opaco desta cadeia tumular”). A vida média de um blog é de cerca de dois meses pelo que já passei do prazo de validade. Queria agradecer a todos os que se deram ao trabalho de não me incluir na sua lista de links. Como ninguém se deu a esse trabalho, agradeço a toda a blogosfera. Obrigado <a desfazer-se em mesuras>, obrigado. A todos os que tiveram a paciência de me ler, obrigado <a aplaudir-se a si mesmo>. Como eu sou o único leitor de mim mesmo, obrigado a ti, obrigado a mim. Vou ter saudades minhas. <dramático> Adeus <puxa o autoclismo e desaparece num redemoínho de água>.


 

Ensaio de Despedidas II


Bidding Goodbye

I bid goodbye
To all,
Goodbye World,
The place of my bearing, the place of my dead,
And to the sun that burnt it,
Goodbye,
And to the wind that sucked
The life out of trees, meagre,
To the branches on which death and I swinged,
Holding hands,
And to the crows that have pecked
At the rocks in the ground,
Goodbye, dust, goodbye,
To the sky,
To the earth,
Dry,
Goodbye,
To the Seat of Permanence,
The Arch that bore me,
To the Concavity that wrought me,
Only this
Goodbye,
I am to be displaced
So I say goodbye,
Eye, lashes, fall,
Goodbye,
My arms I surrender
Laying a good bye,
And toall the people,
Toall
The outspoken,
The unseen,
The unremembered,
That have parted,
That have not stayed,
That have chosen silence,
Namesfaces
Goodbye,
To the dead, goodbye,
It is all I have to say,
Good bye,
And God bye, God.

A Ler: A. R. Ammons – Some Months Ago.

terça-feira, fevereiro 08, 2005

 

À procura de ninguéns


I'm Nobody! Who are you?
Are you — Nobody — Too?
Then there's a pair of us!
Don't tell! they'd advertise — you know!

How dreary — to be — Somebody!
How public — like a Frog —
To tell one's name — the livelong June —
To an admiring Bog!

— Emily Dickinson, 288

O mundo é um lugar muito só; cheio de alguéns. Eu sou um ninguém e procuro alguém como eu; outro ninguém. Acima de tudo, um ninguém feito de nada. Vou procurar um ninguém disse eu. Para reconstruir de volta o silêncio inteiro. Levantei-me à procura de ninguém. Procurei nos buracos da terra, atrás das sombras e debaixo das devastações mas não encontrei nenhum ninguém. O mundo é um lugar muito cheio; cheio de alguéns. Procuro por um ninguém. És tu um ninguém?


 

Ninguém


Ao quarto post reparo que o meu nome não está em nenhum lugar deste blog. Um blog anónimo. Não tenho nome. Não existo.

Banda Sonora: Carl Hancock Rux – I got a name.

 

Ensaio de Despedidas I


Comecei a escrever este blog há <inserir número de dias>. Quando comecei, comecei pelo Dr. Johnson e agora que o fim chegou é somente natural que volte a ele, que sempre foi sensível a toda a espécie de fins. A citação abaixo é do último The Idler, de Domingo, 5 de Abril de 1760.


Though the Idler and his readers have contracted no close friendship they are perhaps both unwilling to part. There are few things not purely evil of which we can say without some emotion of uneasiness ‘this is the last’. Those who never could agree together shed tears when mutual discontent has determined them to final separation; of a place which has been frequently visited, though without pleasure, the last look is taken with heaviness of heart; and the Idler, with all his chillness of tranquillity, is not wholly unaffected by the thought that his last essay is now before him.
This secret horror of the last is inseparable from a thinking being whose life is limited, and to whom death is dreadful. We always make a secret comparison between a part and the whole; the termination of any period of life reminds us that life itself has likewise its termination; when we have done any thing for the last time, we involuntarily reflect that a part of the days allotted us is past, and that as more is past there is less remaining.

Quando viemos ao Mundo, espremidos por um funil bárbaro, choramos ao ver a Luz pela primeira vez. Agora que me vou embora, espero que me perdoem não derramar nenhuma lágrima. Exeunt.



 

Despedidas


Como não sei quanto tempo irá demorar o meu esforço bloguístico é conveniente começar por fazer umas despedidas decentes: Adeus. Não me apetece escrever mais. Não gosto de vocês.

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

 

Fragmentos


THE difficulty of the first address on any new occasion, is felt by every man in his transactions with the world, and confessed by the settled and regular forms of salutation which necessity has introduced into all languages. Judgment was wearied with the perplexity of being forced upon choice, where there was no motive to preference; and it was found convenient that some easy method of introduction should be established, which, if it wanted the allurement of novelty, might enjoy the security of prescription.

Isto é o Dr. Samuel Johnson, o meu herói quer na Literatura quer na Vida, no início do número 1 da sua crónica bisemanal The Rambler (saiu religiosamente todas as Terças e Sábados desde 20 Março de 1750 até 14 de Março de 1752), meditando sobre a dificuldade natural de qualquer começo. Depois de passar por Homero, Horácio, Tucídides e Plutarco, acaba a oferecer o consolo da sua gentil ironia, o consolo possível, para o terrível destino do Cronista Falhado:
Nor is the prospect less likely to ease the doubts of the cautious, and the terrours of the fearful; for to such the shortness of every single paper is a powerful encouragement. He that questions his abilities to arrange the dissimilar parts of an extensive plan, or fears to be lost in a complicated system, may yet hope to adjust a few pages without perplexity; and if, when he turns over the repositories of his memory, he finds his collection too small for a volume, he may yet have enough to furnish out an essay. He that would fear to lay out too much time upon an experiment of which he knows not the event, persuades himself that a few days will show him what he is to expect from his learning and his genius. If he thinks his own judgment not sufficiently enlightened, he may, by attending the remarks which every paper will produce, rectify his opinions. If he should with too little premeditation encumber himself by an unwieldy subject, he can quit it without confessing his ignorance, and pass to other topicks less dangerous, or more tractable. And if he finds, with all his industry, and all his artifices, that he cannot deserve regard, or cannot attain it, he may let the design fall at once, and, without injury to others or himself, retire to amusements of greater pleasure, or to studies of better prospect.

De Crónica em Crónica até ao Falhanço final, os temas serão: Deus, estrelas, violência espiritual, cabeleiras a arder, silêncio, as devastações do amor, mais violência espiritual, ditirambos, solipsismos, humilhação, divagações e ultraviolência. A esperança, ténue mas persistente, é que nos espaços vazios, por entre as fissuras das palavras, alguém consiga detectar um rastro de luz. Ou:
Wir
wissen ja nicht, weisst du,
wir
wissen ja nicht,
was
gilt.

— Paul Celan, Zürich, Zum Storchen (excerto).

Vamos a ver no que isto vai dar.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?